Três décadas de hip hop em BH

PARTE 1

Uma história de 33 anos que tinha que ser contada. Rappers, DJs, dançarinos e grafiteiros direto das alterosas


Por Roger Deff

É impossível falar da cultura hip hop em BH sem remeter aos “Duelos de MCs”, realizados pelo coletivo Família de Rua, e aos vários artistas da cena local, como Radical Tee (integrante do grupo Retrato Radical), que, em atividade há 25 anos, é o mais antigo rapper da cidade, e Flávio Renegado, cujo  trabalho ultrapassa as fronteiras do estilo. Mesmo com tantas referências, há poucos registros sobre os primórdios dessa história.

O hip hop ainda é jovem, completou 43 anos em 2016. A Belo Horizonte – na verdade ao Brasil –, chegou há apenas 33 anos. Não há uma data precisa, mas é possível afirmar que maio de 1983 foi determinante para que jovens do país inteiro, de várias camadas sociais, se identificassem com os movimentos impressionantes do que a mídia chamou de “breakdance”. Tudo por conta de uma única cena em que dançarinos do grupo Rock Steady Crew aparecem no filme Flashdance, de Adrian Lyne (“Flashdance – Em Ritmo de Embalo”), mas de impacto tão poderoso que marcou o desembarque do hip hop no Brasil. A compreensão mais aprofundada dessa cultura, no entanto, só viria em junho de 1984, com o lançamento do filme Beat Street.

NO INÍCIO

É preciso, antes de tudo, fazer um retrospecto sobre o surgimento desse movimento cultural nos EUA. Tudo começou em 11 de agosto de 1973, na Avenida Sedgwick, 1.520, no Bronx de Nova Iorque, quando o jamaicano Clive Campbel (o lendário DJ Kool Herc) realizou a primeira de muitas festas com o objetivo de arrecadar dinheiro para a compra do material escolar dele e da irmã. Foi por ali que nasceu o termo ‘hip hop’, que quer dizer algo como ‘dançar e continuar dançando’.

As festas serviram para aglutinar artes de rua que já existiam de forma independente umas das outras. Uma boa referência para entender aquele ambiente é o seriado The Get Down, mesmo que a cultura ali seja apenas pano de fundo para uma trama pessoal.

Em 1974, Kevin Donovan, então integrante de uma das mais fortes gangues do South Bronx, a Black Spades, ganhou um concurso literário da Unicef que lhe possibilitou uma viagem ao continente africano. Lá, conheceu um líder que lhe explicou como as guerras tribais acabaram por fortalecer o processo colonização européia da África. O raciocínio se encaixava com perfeição ao que acontecia nas ruas de Nova Iorque e às guerras entre gangues.

Donovan retorna aos EUA, adota o nome de Áfrika Bambaataa e começa a militar pelo fim dos embates entre as gangues, que se uniriam com a criação da Universal Zulu Nation, organização que assimilou os elementos culturais que se encontravam nas festas realizadas por Kool Herc e outros DJs.

Enquanto isso, Grandmaster Flash desenvolvia técnicas de manipulação das músicas nos toca-discos, sem as quais os DJs do hip hop não existiriam.

Adotando como princípios o conhecimento, a paz, o amor, a união e a diversão, é a partir da Universal Zulu Nation que todas aquelas formas de arte ganham o nome de cultura hip hop. Não demorou para que a indústria cultural assimilasse, ainda que de forma superficial, manifestações como a dança, chamada de forma genérica de “breakdance”, e o rap. Foi o que aconteceu em videoclipes de Lionel Ritchie, Michael Jackson e, o mais importante para a chegada do hip hop ao Brasil, o filme Flashdance, em maio de 1983.

Sucesso nos cinemas do mundo inteiro, o filme é considerado por todos os que pertenceram à primeira geração do hip hop no Brasil como o marco inaugural dessa cultura no país.  Quem pôde assisti-lo sabe que não se trata de um filme cujo foco é o hip hop. Mas a cena com os dançarinos da Rocksteady Crew, importante gangue de break de Nova Iorque, desencadeou um processo explosivo de identificação dos jovens brasileiros com a cultura de rua que se construía nos Estados Unidos.

Paulo Soares, o DJ a Coisa, conhecido dos bailes de soul e produtor dos primeiros discos de rap em Minas Gerais, lembra que, na década de 80, os primeiros filmes que introduziram o breakdance não falavam que aquilo era da cultura hip hop. “Mas qualquer pessoa que pegar os filmes da época verá que nossa primeira referência (sobre hip hop) foi o Flashdance, não havia outra antes daquilo”, diz.

Roger Ferreira, ou DJ Roger Dee, é um dos poucos da primeira geração do hip hop de BH ainda em atividade. Tendo passado pelos quatro elementos da cultura, atuando como DJ, dançarino, rapper e grafiteiro, Roger Dee é uma referência do movimento em BH.

“As pessoas da velha escola, em todo o Brasil, consideram que aquela cena do Flashdance foi o que detonou o hip hop por aqui. Porém ninguém sabia o nome daquela dança e muito menos que existia uma cultura chamada hip hop por trás daquilo”, lembra.

Dee conta que depois do filme foram chegando mais informações e foi aí que souberam que existia uma dança chamada breakdance. “Na verdade, esse foi um nome criado pela mídia, que pegou todos aqueles estilos de dança que nós chamávamos de sociais ou street dance, e colocou num balaio só, dizendo que tudo aquilo era simplesmente ‘breakdance’. Na verdade, ‘b.boys’ e ‘b.girls’ são os dançarinos da cultura hip hop. ‘Popping’ e o ’locking’ são dançarinos de outra cultura oriunda da costa oeste dos Estados Unidos”, diz.

A dança começou a ser praticada nas quadras e danceterias, tornando-se uma febre entre os jovens da década de 80. A primeira vez que os dançarinos de break puderam ser vistos nas ruas de Belo Horizonte foi na Praça da Savassi, quando alguns garotos, impressionados com as cenas de Flashdance, foram ensaiar seus passos ali.  Eram eles Cromado, Eduardo Sô, Charlinho, Claudinho, apelidado de ‘Tia Dulce’ por ser filho da popular apresentadora de um programa infantil da época, e Pelé, que viria a desempenhar papel fundamental na promoção do movimento que se iniciava. Nascia ali uma das primeiras gangues de break de Belo Horizonte, a Break Crazy.

Veteranos remanescente, Eduardo Augusto da Silva, o dançarino Eduardo Sô, descreve como foram os seus primeiros contatos com o hip hop naqueles dias.

“Eu conheci o Pelé (MC Pelé, José Guilherme Ferreira, falecido em 2009) nas férias de 1983 para 1984. Nessa época, foi inaugurado o BH Shopping e naquelas férias funcionaram ali uma danceteria e uma pista de patinação. Foi lá que conheci o Marquinho e o Charlinho. Em fevereiro de 1984 fui para a academia do Maurício Tobias, a convite do Pelé. Ganhei uma bolsa e o Marquinho e o Charlinho me chamaram para formar o grupo. A primeira vez que a gente dançou foi no padre Eustáquio (região Noroeste da cidade). Mas a roda oficial, quando chamamos os parentes e amigos para nos verem dançar, foi na Praça da Savassi, onde hoje é a loja da TIM. Fomos Pelé, Charlinho, Marquinho e eu, ao som do tocador de fita k7 do Fusca azul do Marquinho. Aquela foi a primeira roda a ir para rua, no início de 1984. O lugar virou um point depois disso. As rádios falavam a respeito, ganhamos patrocínio”, conta.

De acordo com Eduardo Sô, que pesquisou a fundo as danças ligadas ao hip hop, a ponto de visitar Los Angeles para se encontrar com alguns dos primeiros dançarinos, o que a mídia denomina simplesmente de break é, na verdade, um conjunto de danças oriundas de lugares e culturas distintas. O breaking, a cultura dos B.boys, veio de Nova York, enquanto as danças do popping e do locking são originárias de Los Angeles, sem ligação direta com o nascimento do hip hop, tipicamente nova-iorquino.

“A mídia não quis entender isso e simplesmente denominou tudo de breakdance, como se fosse coisa única. Mais ou menos, foi o que aconteceu também com a gente, vendo os videoclipes e filmes como Flashdance, em que os dançarinos de Nova Iorque dançam o breaking, mas também estilos como o robot, o poping e o locking. São coisas diferentes, mas houve um ‘sincretismo’, uma mistura positiva e, espontaneamente, muitos b.boys passaram a dançar o popping e o locking.”, diz.

Ele cita ainda outro marco importante do contexto inicial, o videoclipe da música All Night Long, hit de Lionel Ritchie do álbum “Can’t Slow Down”, lançado em outubro de 1983, onde também aparecem dançarinos de rua.

BEAT STREET E O VERDADEIRO HIP HOP

O ano de 1984 trouxe o que faltava para os jovens que procuravam entender aquele fenômeno cultural. A peça que desvendou o quebra-cabeças foi o filme Beat Street, do diretor Stan Lathan, lançado em junho daquele ano, e que finalmente apresentou o que era hip hop.

Roger Dee lembra daquele momento de iluminação. “Pela primeira vez ficou claro que tudo aquilo era uma cultura e não apenas mais uma moda. Em 1984 a gente descobriu por vídeos e revistas que o hip hop envolvia outros elementos, como o DJ e o grafite, e que a junção de tudo se chamava cultura hip hop. Mas ainda não sabíamos como as coisas funcionavam. O filme Beat Street nos trouxe a primeira visão do hip hop em ação, com todos os seus elementos. Foi o Beat Street que mostrou pra gente como era o Bronx e o estilo de vida daquelas pessoas”, conta Dee.

Eduardo Sô também reforça a importância do filme. “Vivíamos a moda, mas depois do filme Beat Street passamos a viver a filosofia da cultura hip hop. Muitos de nós depois viraram DJs. No começo era a dança, mas quando entendemos tudo, queríamos praticar os quatro elementos”, explica Eduardo Sô.

Como a mídia acabou incorporando e divulgando o movimento, jovens de várias regiões da cidade se identificaram com a estética da dança, mesmo que não tivessem contato entre si. É o caso de Evandro José de Oliveira, o Evandro MC, ex-integrante da Black Soul, primeiro grupo de rap a gravar um LP em Minas Gerais (o álbum “Tráfico, Morte, Corrupção”, de 1993). Morador do Alto Vera Cruz, aglomerado da zona leste de BH, também começou a dançar impulsionado pelo que, até então, era moda.

“Nasci em 1971 e cresci sob a influência da música black. Meu tio que era do Black Power, aquela cultura do cabelão e do ouriçador dentro da meia. Por volta de 1979 ou 1980, comecei a prestar atenção nos sons em que os caras falavam em cima da música, que a gente chamava de “funk pesado”. A batida era forte e os caras não cantavam, falavam. Até que, em 1983, explodiu a febre do break e, como toda aquela geração de adolescentes, também inventei de dançar, imitando Michael Jackson. A moda do break passou e eu continuei dançando. Conheci o Daniel, por volta de 1985 ou 1986. Começamos a fazer coreografias e a dançar nos bailes, ainda sem identificação de nomes. Em 1987 descobrimos o hip hop como cultura. Entendemos que o break era uma dança e que a música era o rap e que tudo fazia parte de um tal hip hop. Veio o disco “Hip Hop Cultura de Rua” (1990) e, ao mesmo tempo, a influência da comunidade, da Dona Valdete (fundadora do grupo Meninas de Sinhá), do movimento cultural e social que existia na comunidade. Começamos, então, a voltar aquela arte que a gente fazia para a comunidade. Foi assim que nasceu o nosso grupo, o Processo Hip Hop”, conta Evandro MC.

O Rap em BH e os primeiros MCs

Embora a dança tenha sido o estopim da cultura hip hop no Brasil, o rap já tocava nas rádios e nos bailes, mesmo que ninguém soubesse exatamente do que se tratava, conforme explica Roger Dee:

“A indústria fonográfica norte-americana vendia música para o mundo inteiro e o rap chegou ao Brasil dentro do universo da funk music. Naquela época se fazia rap em cima das batidas do funk e da disco music. O melhor exemplo disso é a música “Rapper’s Delight”, do Suggar Hill Gang, que foi feita em cima da música Good Times, do Chic. Os caras pegaram o baixo e a batida, fizeram um loop daquilo e criaram o rap com aquela base. Antes de 1983, já circulava o elemento do rap e do MC no Brasil, mas ainda não se tinha ideia de nada sobre o hip hop. Aquela música era considerada um ‘funk falado’”, explica.

“O rap da década de 70 e 80, em Belo Horizonte, era chamado de ‘funk pesado’. Considerávamos que era uma outra linguagem de funk, e não hip hop. Não era rap para nós”, explica o DJ a Coisa.

Os primeiros raps feitos aqui surgiram por volta de 1984. O crédito das primeiras demonstrações públicas do rap é dado a Flávio Pereira que, além de dançarino da Break Crazy, é considerado o primeiro MC da cidade.

“Foi em uma festa da revista Dançar. O pessoal da Break Crazy convidou todo mundo. O Flávio subiu no palco fazendo beatbox (técnica em que se imita os sons de uma bateria com a boca). As pessoas não entendiam bem o que estava acontecendo mas se emocionaram. Essa foi a primeira vez que vimos alguém fazendo rap ao vivo e a cores”, afirma Roger Dee.

Flávio Pereira, que já tinha envolvimento com manifestações artísticas afrobrasileiras, se identificou muito com aquela cultura de rua que, até então, as pessoas não sabiam bem o que era. Segundo Roger Dee, ele trazia uma bagagem cultural e de identidade negra muito sólida. “Ele era dançarino de afro, músico, fazia parte do movimento do soul. A gente costumava brincar que o Flávio era o nosso Áfrika Bambaataa, uma grande referência para nós dentro da arte e da cultura negra, de postura artística. Isso é algo que não existia em São Paulo, como fica claro quando se conversa com os caras que frequentavam a São Bento (Estação de Metrô onde os primeiros dançarinos de São Paulo se encontravam). Eles não tinham muito essa pegada artística. Então, pessoas como Flávio, Charlinho e Maurício Tobias nos ajudaram muito nisso”, conta.

Vivendo atualmente na Espanha, Flávio Pereira lembra com saudades dos seus tempos de rimador e dançarino nas ruas de BH. “Naquela época era tudo com amor. Se você faz a arte sem amor, não vale”, diz. “Eu adorava aquilo. Ia aos clubes e improvisava (as rimas). As pessoas pediam pra eu repetir a letra, mas era impossível. Comecei a improvisar quando vi os americanos fazendo essa parada. Eu cantava nos clubes o que tinha na alma, coisas como ‘vem pra cá, vamos dançar, abre seu coração’. E o pessoal gostava dessas intervenções. Se eu tivesse que viver tudo aquilo outra vez, viveria, porque realmente foi lindo demais”, recorda.

Sobre ser considerado o primeiro MC de Belo Horizonte, ele diz não ter certeza. “Se, naquela época, havia outra pessoa fazendo rap, não sei. Neste planeta você nunca deve achar que está fazendo algo sozinho. A questão é quem apresenta o trabalho primeiro, né?”, afirma. Quanto ao lugar em que cantou primeira vez, diz não se lembrar. “Nós fizemos um evento em protesto contra a galera do Rio de Janeiro, que tava dizendo que só eles faziam hip hop”, recorda.

Anos depois, em 1992, Flávio Pereira participou da coletânea Fábrica de Ritmos, produzida em Belo Horizonte numa parceria entre os DJs a Coisa e DJ Joseph. O LP, lançado pelo selo independente Black White Discos, é o primeiro registro fonográfico dos gêneros rap e funk em Belo Horizonte, lembrando que naquele período os estilos não estavam tão separados. O chamado “funk carioca” ainda estava em formação e o hip hop, sendo assimilado.  

O LP reuniu músicas de artistas atuantes naquele momento, como Evandro MC, MC Pelé, Black Soul e o próprio Flávio Pereira, com a música “rap’reciso”, com letra de sua mãe, Dirce Pereira.

“Foi o primeiro LP de Minas Gerais nesse estilo. Tenho três cópias intactas guardadas”, diz Flávio. Sobre a faixa que gravou, ele diz que “a letra da minha mãe parece uma oração, que bate fundo como reflexão de vida”. Ele recita um trecho: “É preciso ter fé, é preciso ter calma, é preciso lutar, dar de si um pouco mais, entrar dentro de si, procurar a paz”.

Outro nome celebrado entre os hiphoppers da primeira geração é Natalício da Silva Pereira que, conforme afirmam DJ a Coisa e Roger Dee, foi o responsável pelas primeiras letras de conteúdo socialmente engajado.

DJ a Coisa relata que “Natalício foi o primeiro cara de rua, o primeiro a trazer essa linguagem mais urbana, usando termos como ‘trouxa’ e ‘otário’. Foi por meio dele que surgiu o grupo Protocolo do Subúrbio (do qual faziam parte o DJ a Coisa e os MCs Carniça e Lingüiça). Eu já tinha os discos, mas foi ele que disse que aquilo era rap”, diz, acentuando a pronúncia americana.

Natalício faleceu por meningite em 29 de abril de 1991, um dia antes do evento ‘Somzeira’, uma espécie de confraternização das equipes de som de Belo Horizonte, nas Quadras da Vilarinho. “No dia da festa, houve um minuto de silêncio em homenagem a Natalício”, lembra Roger Dee.