Um retrato do Bolsa Família

Em Entre Rios de Minas histórias sobre o programa de inclusão que mudou a vida de muita gente. Bolsa Família não é esmola.


Por Cássio Leonardo e Priscila Zavagli. Edição Rafael Lipovetsky.

Publicado em 14/08/2018

 

Foto: Cássio Leonardo

Situada na região das vertentes, Entre Rios de Minas é uma cidade que possui cerca de 15.000 habitantes. O município tem 2.092 famílias inscritas no Cadastro Único, e 796 recebem o Bolsa Família, o que representa quase 73% da estimativa de famílias pobres da cidade. O valor total transferido pelo Governo Federal em benefícios às famílias atendidas chega a quase R$ 106.000,00 ao mês, e o acompanhamento de frequência escolar registra cerca de 772 alunos entre 6 e 15 anos e 133 jovens entre 16 e 17 anos.

As condicionalidades do programa e o foco educacional

Saúde e educação são os quesitos que justificam o recebimento do benefício. O acompanhamento da pesagem e da frequência escolar dos filhos garante que as famílias permaneçam ativas dentro do programa. Uma vez recebendo o benefício, as crianças precisam ter a pesagem acompanhada por profissionais da saúde e uma frequência escolar de no mínimo 75%. Contudo, apenas frequentar as aulas não é suficiente para a formação desses alunos. O Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), que atende todas as famílias cadastradas no programa da cidade de Entre Rios de Minas, trabalha com oficinas de artes, práticas esportivas e musicalização, a fim de complementar a educação das crianças. Os professores são contratados com o dinheiro do Índice de Gestão Descentralizada Municipal (IGD-M), criado em 2006, como forma de contribuir para a gestão municipal do programa.

Paulo Freire sempre disse que sem a educação a sociedade não muda, e é isto que o Programa Bolsa Família propõe: romper o ciclo de pobreza por meio da educação, nos últimos dez anos o número de crianças matriculadas e frequentes nas escolas aumentou em todo país; porém, não basta somente ter as crianças frequentando a escola, é preciso se preocupar com o que e como elas aprendem.

O Programa Bolsa Família (PBF) ainda é considerado um dos maiores programas de combate à pobreza do mundo, tendo sido citado pela revista britânica The Economist “como um esquema anti-pobreza originado na América Latina que está ganhando adeptos mundo afora” e pelo jornal francês Le Monde como um programa que amplia, sobretudo, o acesso à educação, que apresenta a melhor arma, no Brasil ou em qualquer outro lugar do mundo, contra a pobreza.

Estando na Constituição ou não, o fato é que o PBF trouxe e ainda traz grandes mudanças na vida de quem é contemplado por ele. Treze anos após sua criação, falar dos avanços e do progresso no processo de resgate de brasileiros em situação de vulnerabilidade social não é novidade, por isso colocaremos uma lupa sobre um dos pilares do programa de transferência de renda: a educação.

Dentro das condicionalidades do programa, a saúde e a educação são fatores pontuais para que uma família continue recebendo o benefício mensalmente.

Entenda melhor sobre o Bolsa Família no vídeo abaixo.

Música, arte e esporte como formas de educação

“A esperança tem asas. Faz a alma voar. Canta a melodia mesmo sem saber a letra. E nunca desiste. Nunca.” Emily Dickinson

Foto: Cássio Leonardo

Talvez seja esta a esperança de que fala a poeta americana, que leva as crianças a lotarem a sala de música: o CRAS atende cerca de 70 crianças e adolescentes, as aulas de musicalização acontecem duas vezes por semana e são feitas com todas as crianças, que são separadas por faixa etária. Segundo o professor e músico Ralf Lima, a musicalização Infantil é um poderoso instrumento de educação, pois desenvolve na criança a sensibilidade musical, a concentração, a coordenação motora, a sociabilização, a acuidade auditiva, o respeito a si próprio e ao grupo, a destreza do raciocínio, a disciplina pessoal, o equilíbrio emocional, entre outras qualidades que colaboram para a formação do indivíduo.

Os alunos participam com gosto e, quando entram na sala e encontram os poucos instrumentos em cima das cadeiras e bancadas improvisadas, correm para pegá-los, e, nessa hora, é cada um por si; isso até a entrada do professor, que tem cara de mal, mas nem assim consegue assustar os pequenos, que largam os instrumentos e fazem um círculo esperando ansiosos o começo da aula. As aulas quase nunca são interrompidas pelo professor, que sempre começa fazendo um exercício de concentração com os alunos. Segundo ele, é de suma importância trabalhar a capacidade de concentração deles antes de começarem de fato a produzir sons.

A tarefa é simples: dois alunos são escolhidos e vão para o centro da roda, ainda tímidos, e então parados de frente um para outro, é escolhido quem será o espelho e quem será o reflexo. Após isso, eles devem imitar com precisão os movimentos feitos pelo colega. Depois que todos já fizeram esse primeiro exercício de concentração, e mais relaxados, eles começam a aquecer a voz, para começarem a cantar as músicas, que são sempre canções simples, infantis e bem animadas. Então, o professor com o violão vai guiando as canções, e os pequenos se soltam. Essa aula tem a duração de uma hora e, quando acaba, deixa nas crianças um gosto de quero mais.

Foto: Cássio Leonardo

Além das aulas de musicalização, os alunos também fazem aulas de artes visuais e práticas esportivas. Existe um time de futebol em que os meninos e meninas disputam em times mistos. Os esportes têm sido cada vez mais uma ferramenta de inclusão social, são de suma importância para a educação de crianças e jovens, e essa é uma preocupação do CRAS da cidade de Entre Rios de Minas, que oferece aos jovens várias formas de socialização. Segundo o psicólogo e funcionário do CRAS Ângelo André, essas iniciativas visam preparar os alunos de forma mais plural, o que segundo ele é indispensável no processo de formação de qualquer pessoa.

Nesse ponto, é interessante lembrar um dos principais nortes do Programa Bolsa Família, que é romper com o ciclo de pobreza. Não se trata apenas de garantir o consumo de parte dessas famílias, mas também de conseguir levar dignidade para elas, o pouco dinheiro que elas recebem faz toda diferença na educação, pois, de barriga cheia, é mais fácil aprender, dispara André emocionado.

Isso fica claro quando entramos a fundo na rotina escolar de três famílias da cidade, a preocupação com a educação chegou na casa de todos os beneficiários. O motivo? Talvez seja o fato de as panelas estarem cheias, ou somente a vontade incontrolável de não ver seus filhos sofrerem; isso fica claro quando essas mães falam dos sonhos que nutrem para seus rebentos.

Foto: Cássio Leonardo

As famílias de Márcia e Maiara — o rompimento do ciclo da pobreza

“Samuel, Sabrina, Erick, Marcus Vinícius e Renan”. Foi assim que Márcia nos respondeu quando ouviu a famigerada frase: “quantos filhos você tem?” Os nomes vieram em meio a sorrisos e brilho nos olhos, enquanto a prole se aproximava para nos receber. Todos eles. Com idades entre 16 e 8 assim, “assim, encarrilhadinho mesmo” como ela diz, os cinco participam de todas as oficinas que o CRAS oferece.

Beneficiária do Bolsa Família há 16 anos, “desde que Samuel tinha 6 meses”, Márcia está prestes a parar de receber o auxílio. Ela saiu da área de vulnerabilidade social, como os letrados gostam de dizer, ou, em outras palavras, saiu do ciclo de pobreza. O marido Samuel Anselmo, 43 anos, é motorista, e era ele, até então, quem provia, a duras penas, o sustento da casa. Entre um bico aqui e ali, ela complementava a renda como podia, e conta com orgulho: “os meninu até vende picolé pra ajuda aqui em casa”. Mas a partir de agora a responsabilidade que antes ficava a cargo de Samuel Anselmo será dividida com ela, que, empregada com carteira assinada, conta da alegria de devolver o cartão e assim poder passar o benefício para alguma família que ainda espera ser contemplada com o programa Bolsa Família.

Foto: Cássio Leonardo

Maiara Luciana Costa Coelho, 25 anos, amasiada, 3 filhos.

Mãe de Luana, 9 anos; de Beatriz, 7; e de Luan Vinícius, 2, Maiara é vendedora em loja de roupa e deixou de receber o Bolsa Família há dois anos, quando a renda per capita ultrapassou a estabelecida pelo programa. Ela e o companheiro trabalham para manter a família que vive num modesto e confortável apartamento com decoração simples e muitas imagens de Jesus Cristo. As filhas Luana e Beatriz, mesmo não sendo mais beneficiárias do Bolsa Família, ainda frequentam as oficinas do CRAS. Segundo Maiara, são as oficinas que ajudam na socialização das meninas, “que são muito tímidas”, e preenchem o tempo em que elas não estão na escola e não têm com quem ficar enquanto a mãe trabalha. Maiara conta que o estudo é o que mais preocupa na criação dos filhos e, com o sonho de serem médica e dentista, as meninas mantêm boas notas e frequência, independentemente do benefício, “mesmo sem receber o Bolsa Família a educação vem em primeiro lugar”.

Foto: Cássio Leonardo

A família de Elane e o pedido de socorro

Gargalhadas era o que se ouvia ao se aproximar da casa de Elane dos Santos Pena, 30 anos. Quatro meninas corriam e brincavam na garagem, porque, para um sábado chuvoso, a rua não era convidativa. Duas meninas são suas filhas, e as outras duas são coleguinhas de escola. A primeira a chegar no portão é Talita, de 9 anos. Ela vem antes da mãe e do pai, já antecipando o perfil de liderança que notaríamos mais tarde. Sara, a pequena de 7, é a cara do pai. Mas só a cara. É tímida e retraída como a mãe. Quase não fala.

Assim também é Elias, o jovem de 12 anos, que só depois de certo tempo resolveu se aproximar de nós e até aparecer em fotografia. Elane nem isso topou. Ela não corta os cabelos e nem usa calças compridas, prefere a saia jeans. Os olhos sempre marejados fitam constantemente as próprias mãos e evitam o contato direto. “Tenho 30 anos e tô parecendo uma velha”, disse a mãe enquanto as crianças se divertiam com os equipamentos de gravação e o foco da conversa não era ela. Elane e a câmera não podiam estar no mesmo ambiente. Ela está desempregada, assim como o ainda marido Wellington, de 35 anos, que há pouco tempo perdeu o emprego de encarregado de transporte. Eles contam com a ajuda da mãe de Elane para o sustento da casa, “é no sustento mesmo, ela não dá dinheiro, compra umas coisas, sabe?”

A família poderia ser descrita como o estereótipo que sempre encontramos quando o foco a ser mostrado é a situação de pobreza e necessidade em um meio alegre e esperançoso onde todos permanecem unidos para mudar o quadro em que se encontram, como muitas que conhecemos por aí, famílias em que o Bolsa Família faz toda diferença para o rompimento da pobreza. Sim. Mas Elane nunca recebeu o benefício. Três crianças, desemprego, depressão.

A falta de cuidado por parte da Secretaria de Ação Social, que não disponibilizou as informações corretas, não permitiu que Elane recebesse o benefício que proporcionaria para sua família o mesmo que Márcia e Maiara conseguiram para seus filhos. Não conseguimos saber dos filhos de Elane, o que eles gostariam de ser no futuro. Elane foi impedida de atualizar o cadastro enquanto o divórcio não sai.

As crianças frequentam as oficinas do CRAS. Para Elias, isso faz toda a diferença no dia a dia; para Elane, além das aulas, as crianças têm a garantia do lanche. Daqui a uns meses, quem sabe, ela conseguirá finalmente receber o auxílio do governo. A saída de Márcia do programa pode ser o primeiro degrau nessa jornada, e a saída do nome de Wellington do cadastro o último.