Vidas Secas na Greve Geral


Por Flávio de Castro

Foto: Lucas Simões

A greve começou segunda-feira no whatsapp. Os colegas do grupo se atiçavam, queriam ver quem “era homem de faltar”. Postavam vídeos, fotos, palavras de ordem e desdenhavam do ativismo hashtag. Desdenhavam da militância online, da bunda-mole na cadeira giratória contra tudo e contra todos. Desdenhavam até da ansiedade tagarela dos seus vinte anos, da esperança romântica de algum Castro Alves do Facebook. Meu deus vem olhar, vem ver de perto uma cidade a postar. A semana passava e os colegas de trabalho dentro dela, esperando a greve e postando. FORA TEMER, bora amor, bora gemer que amanhã tem greve.

E não é que já fez um ano, o Golpe? O Golpe, com G maiúsculo. Por isso, durante a semana o whatsapp apitava indícios de uma revolução. Sexta-feira , neste Desbrasil inteiro. A Cidade Baixa, a Vila Mimosa, a Rua Paim, Recide Velho… e Belo Horizonte, então? Imaginavam a Pampulha, sintese da cidade, com sua igreja vazia e a falsa lagoa sendo tomadas pelas classes populares. Todavia a capital mineira, ranheta, amanheceria com chuva no dia 28 de Abril.

Na zona Sul de Belo Horizonte a vida é circular. Está dito, provado e registrado no cartório pelo próprio Amanuense Belmiro. Em algum ponto desta órbita um sujeito acordou em sua vida circular, mas não foi ao trabalho, pois fez um acordo amigável com o chefe gente boa que “não é esquerda nem direita, só era contra a corrupção”. O sujeito da vida circular acordou empolgado e mandou logo um“FORATEMER” pela janela do Sion. Sem ouvir resposta de outros sujeitos de vidas circulares, ele juntou sua família circular e foram pra baixo da chuva como se fossem Sinhas Vitórias, Baleias, Meninos e Fabianos. Foram para a Praça Sete, metidos naquele sonho.

Petrobrás, Correios, Professores, Metalúrgicos, Bancários. Professores, gente do teatro, da dança, da capoeira, do hip hop, gente do cinema. Psiquiatras, assistentes sociais, pencas de universitários decalcados com circulos nas camisetas: AMAR SEM TEMER. O sujeito de vida circular segurou na mão da mulher, a mulher segurou na mão do menino, os corações disparados, valentes. O sujeito explicou pro menino que não, que não havia problema nenhum em gritar FORA TEMER diante dos policiais. O sujeito até mesmo saiu de sua vida circular e gritou FORA TEMER às 11: 45 da manhã diante de uma viatura, pois o menino havia lhe perguntado se era um direito gritar FORA TEMER diante da polícia, da guarda-municipal, do exército, dos médicos, dos bombeiros, do Bope, do Circo, da Igreja. Perguntou se era direito atravessar a Afonso Penna gritando em direção das bandeiras, dos auto-falantes, dos ambulantes e da tropelia que fazia a multidão. Sim, era direito e eles giraram no carrossel vermelho da praça Sete, conluiados com o povo preto, pobre, gordo, gay. Um menino branco de camiseta vermelha conhecendo o lado de fora do carro, do colégio, do prédio, do judô, da aula de inglês. Um menino embrenhado no meio do seu povo. A mãe preocupada, com medo de bomba. Com medo de gás de pimenta, de cacetete, cavalo, bala de borracha. A mãe sem férias, sem décimo terceiro, sem convênio, sem FGTS. Valente a mãe, desempregada, segurando seu menino pela mão.

Eles moravam perto da Serra, mas a Serra não desceu. Nem o Papagaio, Santa Lúcia, Lagoinha, Durval de Barros, Alípio de Melo, Cabana, Ibirité, Ribeirão das Neves, Santa Luzia. Não houve tiro, não houve bomba, o menino não se perdeu da mãe, ainda não. Apenas o giro em torno do Pirulito, o abraço na frente do Cine Brasil. Se o menino tivesse nascido na Serra, se o menino tivesse descido da Serra não haveria o medo de bala de borracha, spray de pimenta, cachorro, farda, cavalo, camburão. E eles ficaram girando por quase uma hora, antes de irem ao Maletta pois o Café Palhares não aceitava débito. No meio do caminho havia um homem, havia um homem no meio do caminho, e o homem abordou o menino pedindo dinheiro pra comprar remédio. Os olhos do homem giravam, pedindo moedas. O menino não sabia se era medo, amor ou delirio, mas olhou nos olhos rasgados do homem. Pois sim, ele, o homem, a mãe, o pai, o pirulito, o país, estavam todos fudidos. E assim que avistou a viatura passando na avenida já liberada pela BHTrans, o menino de onze anos gritou FORA TEMER e foi-se embora de mãos dadas com a sua mãe.

Conto-reportagem

Flávio de Castro

Poeta, professor de literatura e funcionário público de si mesmo.