A volta dos manicômios

Governo Teme inverte política de drogas e valoriza internação. Só o tratamento e a abstinência proporcionam bons resultados, afirma o ministro.


Por Sérgio Lacerda

Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

A grande imprensa não deu a menor bola, mas o governo federal publicou, no dia primeiro de março, resolução que muda substancialmente a política nacional sobre drogas e prioriza a internação compulsória de dependentes em hospitais e clínicas psiquiátricas particulares em detrimento ao atendimento público e apoio nas ruas.

O autor da proposta, atual ministro do Desenvolvimento Social e Agrário, o deputado e médico Osmar Terra (MDB), que votou a favor do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, afirmou, em nota a O Beltrano, que “a política que o governo vai adotar a partir desta resolução é diferente. A lei em vigor tem se revelado fraca no sentido de conter a epidemia de uso de drogas, mesmo que proibindo-as. Esta resolução amplia a forma de agir nas políticas públicas em relação às drogas […]. É uma manifestação não só do conselho, mas do governo, já que os votos do governo [no Conad] foram unanimemente contrários a uma política de liberação das drogas”.

Osmar Terra classifica o modelo atual, que valoriza a redução de danos para a pessoa vítima de dependência química com acolhimento, tratamento e reinserção social, “é extremamente proibicionista e restritivo”, na contramão do que pensa a comunidade de profissionais que atua neste campo. Para ele, só o tratamento e a abstinência proporcionam bons resultados.

Terra disse que os profissionais que atuam nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPSAD) e em outros equipamentos públicos que trabalham com dependentes químicos “o fazem por um manual que proíbe falar em abstinência e dão um resultado pífio”.

“A partir de agora, todo o material que for produzido pelo governo e toda capacitação de profissionais vai ser diferente, colocando questões que não vinham sendo colocadas, como a promoção da abstinência”, acentuou o ministro em nota.

Pá de cal

Com a edição da resolução 001/2018 por parte do Conselho Nacional Antidrogas (Conad), órgão vinculado ao Ministério da Justiça, o governo resgata uma política pública duvidosa em relação ao enfrentamento da questão das drogas e abre caminho para uma ação restritiva, que privilegia a internação de dependentes químicos e de álcool e o fortalecimento das comunidades terapêuticas e dos hospitais psiquiátricos.

Seria a volta dos tempos manicomiais?

Em meio à perspectiva de ampliação da intervenção na segurança pública de outros estados, além do Rio de Janeiro, o governo Temer joga uma pá de cal no debate sobre a legalização ou regulamentação do uso de drogas, em nome de uma postura de enfrentamento e endurecimento das ações de combate às drogas ilícitas no país.

Com o novo modelo, o governo quer retirar o protagonismo dos que defendem o sistema de redução de danos, em que o indivíduo é respeitado em sua condição de cidadão, em nome da promoção excessiva da abstinência como a principal forma de tratamento. Desta forma, reforça o papel dos hospitais psiquiátricos e das clínicas de tratamento, setor historicamente dominado pela comunidade evangélica.

Também abre caminho para que o tratamento psiquiátrico e a internação compulsória de dependentes químicos seja a pedra angular da política de Estado de enfrentamento do uso de drogas no país.

No pano de fundo dessa guinada na política nacional antidrogas está a chamada comunidade terapêutica, geralmente ligada à igreja evangélica. O lobby deste segmento no Congresso Nacional e junto ao Poder Executivo foi a mola propulsora desta resolução.

Atualmente, o sistema de prevenção e combate às drogas funciona baseado em equipamentos de apoio social ao dependente e usuário, os chamados CAPSAD (Centros de Atenção Psicosocial – Álcool e Drogas), vinculados às secretarias de saúde, política social e assistência social, com forte atuação de psicólogos, educadores, psicanalistas, assistentes sociais e outros profissionais.

A partir de agora, os CAPSAD perdem espaço para as clínicas de tratamento e hospitais psiquiátricos e terão recursos minguados pelo Executivo.

Modelo Ultrapassado

Este modelo voltado à internação e abstinência foi abandonado no Brasil há mais de vinte anos. Assim que a resolução foi publicada, o Conselho Federal de Medicina (CFM) divulgou nota em que defende abertamente a decisão: “Diante do grande desafio do Brasil na prevenção e no combate ao tráfico de drogas, bem como seu impacto nos indicadores de saúde, o CFM manifesta publicamente seu apoio às propostas de mudança”

O presidente do CFM, médico Antônio Geraldo, afirma que “a decisão do CONAD é uma vitória para a sociedade brasileira e permitirá uma melhor utilização dos recursos destinados ao combate dos problemas causados pelas drogas”. A partir de agora, diz a nota, a “orientação central da Política Nacional sobre Drogas deve considerar aspectos legais, culturais e científicos, em especial a posição majoritariamente contrária da população brasileira quanto a iniciativas de legalização de drogas”.

A mudança também recebeu o apoio do coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde, Quirino Cordeiro Júnior. “A partir de agora, as ações e cuidados assistenciais destinados aos que enfrentam problemas com as drogas levarão em conta as evidências científicas. As abordagens levarão em conta a promoção da abstinência e não apenas a redução de danos”, afirmou.

Revigorando o monstro

O representante do Conselho Federal de Psicologia, Filipe de Mello Lopes, coordenador da Comissão de Saúde, Álcool e Outras Drogas do órgão, sinaliza para um retrocesso com a nova política. “Muda-se a orientação de cuidar para a direção de punir”. Neste sentido, sustenta Filipe, a proposta surge para seguir no desmonte das políticas públicas vigentes e, sobretudo, “favorecer a alguns, bastante afortunados, que se mantém com o sofrimento das pessoas que fazem uso de substâncias psicoativas”.

“A proposta refaz e revigora o monstro que fomos calando ao longo de trinta anos de luta anti-manicomial no Brasil: a lógica manicomial do asilamento de pessoas em sofrimento”, diz Filipe.

“É um absurdo que vai favorecer a perda de direitos”, acrescenta a presidenta do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais, Dalcira Ferrão. “É uma resolução que reforça o uso da abstinência como única forma de tratamento, numa lógica proibitivista, contrapondo a tantas metodologias já consolidadas, referendadas pela luta antimanicomial”.

O médico especialista Frederico Garcia, uma das referências no campo acadêmico em se tratando do assunto, presidente do Centro de Referência de Álcool e Drogas da UFMG (CRR), pensa diferente. Para ele, a resolução fortalece um modelo que apresenta resultados mais satisfatórios na prevenção e combate às drogas do que o modelo adotado atualmente.

Para a ex-presidente do Conselho Antidrogas de Belo Horizonte, Soraya Romina, o modelo atual, sustentado pelos CAPSAD, não dialoga com a comunidade terapêutica. “Hoje não existe um reconhecimento da comunidade terapêutica”, assegurou. Na sua opinião, o governo não pode abandonar perspectivas de avanço, como aquelas implementadas no Uruguai e em outros países, de regulamentação do uso de drogas ilícitas.

Direitos humanos

“É uma política fadada ao fracasso”, alerta a psicóloga Kelly Nilo, mestre em Ciências Sociais, com ênfase em políticas públicas de álcool e drogas e uma das importantes fontes sobre o assunto em BH. Para ela, o sistema atual de redução de danos é mal compreendido e a nova política do governo só virá prejudicar as pessoas mais pobres e os negros. “A maioria destes dependentes não conseguem suportar a abstinência”, diz.

Kelly sustenta também que o Estado não tem o direito de internar uma pessoa compulsoriamente em nome de uma política pública antidrogas, desrespeitando o direito da pessoa. “Não tem o direito de dizer para o cidadão o que ele deve fazer com o seu corpo”, sentencia. Afinal, “saúde é um direito garantido pela Constituição”.

Esta resolução vai abrir margem para a violação dos direitos humanos, principalmente por parte das clínicas e hospitais psiquiátricos. Para Kelly Nilo, a situação se agrava ainda mais porque não há qualquer fiscalização da atuação destas instituições.

No entendimento do psicanalista Daniel Good God, abandonar a perspectiva de redução de danos e de saúde é andar na contramão da história. “Há mais de dez anos é entendido por instituições de todo o mundo que internação e abstinência não são o melhor tratamento para nenhum tipo de transtorno mental, o que inclui a drogadição pesada.

“Quando a internação é compulsória, a grande maioria retorna ao uso de drogas”, avalia o psicanalista. “Quando a internação não é compulsória, este número é melhor, mesmo que abaixo do desejável”, diz.

Certo é que como a resolução tem força de lei e será implementada imediatamente. O próximo passo do governo será a aprovação de um projeto de lei no Senado Federal (PLC37), que garante o direito de instituições como Justiça e Ministério Público e das policiais de colocar em prática o instrumento da internação compulsória de dependentes, numa prática aberta de higienização social.