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O \u00f3dio contra o Bolsa Fam\u00edlia e o Ensaio sobre a Cegueira<\/h1>\n

[\/vc_custom_heading][vc_column_text]Por\u00a0Luana Tolentino<\/span><\/em>[\/vc_column_text][vc_column_text]<\/p>\n

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Na \u00faltima sexta, 10\/02, L\u00e9o, meu amigo, meu melhor amigo, completou mais um ano de vida. A comemora\u00e7\u00e3o pelo anivers\u00e1rio foi regada a cerveja, churrasco, reencontros e m\u00fasica baiana. Dancei muito. Parecia que estava me despedindo do mundo. Sim. Sou dessas!<\/span><\/p>\n

Na volta para casa, o clima que era de festa, ficou um pouco pesado. N\u00e3o me lembro por que, mas em determinado momento uma colega e eu come\u00e7amos a falar sobre licen\u00e7a-maternidade. Ela disse que pensava nos patr\u00f5es, por isso achava um absurdo uma mulher ficar seis meses afastada do trabalho. Na condi\u00e7\u00e3o de feminista e mal-criada quando necess\u00e1rio, rebati logo em seguida.<\/span><\/p>\n

– Sabe quando ficarei do lado dos patr\u00f5es? Nunca! \u00c9 por causa dessas rela\u00e7\u00f5es trabalhistas perversas que tantas mulheres est\u00e3o adoecidas!<\/span><\/p>\n

Mas o pior ainda estava por vir. A conversa mudou de rumo. A bola da vez passou a ser o Bolsa Fam\u00edlia, assunto proibido em reuni\u00f5es de trabalho, festas de fam\u00edlia, casamentos, batizados e vel\u00f3rios. As discuss\u00f5es sobre o programa nunca terminam bem. De um lado, aqueles que veem o programa de distribui\u00e7\u00e3o de renda como um mecanismo de inclus\u00e3o social e combate \u00e0 pobreza. Do outro, os que tomados pelo preconceito o chamam de \u201cBolsa Esmola\u201d ou \u201cBolsa Vagabundo\u201d. \u00c9 sempre \u201ctiro, porrada e bomba\u201d.<\/span><\/p>\n

Ciente disso, poderia ter me calado, mas decidi prosseguir, tentando manter a serenidade que adquiri desde que comecei a fazer an\u00e1lise e medita\u00e7\u00e3o.<\/span><\/p>\n

Disse ela que \u201cna fazenda onde o meu amigo mora ningu\u00e9m trabalha mais. Todo mundo recebe o Bolsa Fam\u00edlia. Tem uma mulher que recebe R$ 5 mil por m\u00eas\u201d.<\/span><\/p>\n

Respirei fundo. Respondi que n\u00e3o era bem assim. \u00c9 falsa a id\u00e9ia de que os benefici\u00e1rios do programa s\u00e3o pregui\u00e7osos. Acontece que com a chegada do Bolsa Fam\u00edlia, em v\u00e1rias localidades do interior do pa\u00eds as pessoas j\u00e1 n\u00e3o se submetem a trabalhos em troca de pagamentos irris\u00f3rios ou de um prato de comida. Nas palavras da pesquisadora Walqu\u00edria Le\u00e3o Leite, autora do livro Vozes do Bolsa Fam\u00edlia, com o benef\u00edcio \u201co tradicional coronelismo perdeu for\u00e7a e a arraigada cultura da resigna\u00e7\u00e3o est\u00e1 sendo abalada\u201d.<\/span><\/p>\n

Meu argumento n\u00e3o foi suficiente. Com os \u00e2nimos acirrados, ela prosseguiu:<\/span><\/p>\n

-Recebe o Bolsa Fam\u00edlia quem n\u00e3o precisa. Tem mulher que ‘arruma’ filho s\u00f3 pra receber o Bolsa Fam\u00edlia. Quanto mais filhos, mais elas recebem.<\/span><\/p>\n

Contei at\u00e9 tr\u00eas. Respirei fundo novamente. Dessa vez fiz valer a m\u00e1xima de que \u201ccontra fatos, n\u00e3o h\u00e1 argumentos\u201d.<\/span><\/p>\n

Expliquei que um levantamento feito em 2013 pelo Minist\u00e9rio do Desenvolvimento Social e Combate \u00e0 Fome apontou que, em uma d\u00e9cada, 1,690 milh\u00f5es de fam\u00edlias sa\u00edram de forma espont\u00e2nea do programa ap\u00f3s declarar que tinham renda familiar acima do limite permitido, que \u00e9 de R$ 140,00 por pessoa. Disse que em 2015 uma auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da Uni\u00e3o (TCU) detectou que das 13.216.986 fam\u00edlias cadastradas no programa, apenas 1,23% recebia dinheiro de forma indevida. Disse ainda que dados coletados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domic\u00edlios (Pnad) indicaram que as mulheres que recebem o Bolsa Fam\u00edlia tiveram menos filhos que a m\u00e9dia nacional entre 2003 e 2013.<\/span><\/p>\n

Embora eu n\u00e3o tenha mencionado durante a nossa \u201cquase briga\u201d, para refutar qualquer pensamento que desqualifique as benefici\u00e1rias do programa e mostrar o impacto positivo do Bolsa Fam\u00edlia na vida das mulheres, registro aqui a observa\u00e7\u00e3o feita pela fil\u00f3sofa Marilena Chau\u00ed em entrevista concedida \u00e0 revista Cult de fevereiro do ano passado:<\/span><\/p>\n

Como o dinheiro vai para as mulheres, elas foram transformadas em chefes de fam\u00edlia. (…) Com o Bolsa Fam\u00edlia, quebra-se o monop\u00f3lio masculino sobre a administra\u00e7\u00e3o da casa. (…) As mulheres passaram a cuidar mais de si mesmas. Juntando o dinheiro do Bolsa Fam\u00edlia com os servi\u00e7os do SUS, por exemplo, elas fizeram diminuir o n\u00famero de doen\u00e7as femininas. Finalmente, elas tem participado mais de atividades p\u00fablicas, filiaram-se a movimentos sociais e criaram cooperativas. H\u00e1 uma quantidade enorme de cooperativas criadas pelas mulheres com o que sobra do uso do dinheiro do Bolsa Fam\u00edlia.<\/span><\/p>\n

Voltando a nossa conversa, n\u00e3o satisfeita, ela ainda tentou contestar o incontest\u00e1vel, apelando para o discurso da meritocracia.<\/span><\/p>\n

-Ent\u00e3o todo mundo que recebe de forma ilegal est\u00e1 na minha rua. S\u00f3 pode. N\u00e3o sei quem est\u00e1 errado, se \u00e9 o partido, se \u00e9 o governo, mas eu acho que as pessoas tem que trabalhar e conseguir as coisas com o pr\u00f3prio esfor\u00e7o.<\/span><\/p>\n

Seria perfeito se um parcela significativa da popula\u00e7\u00e3o n\u00e3o precisasse do Bolsa Fam\u00edlia para garantir a sobreviv\u00eancia e ter acesso a condi\u00e7\u00f5es de vida dignas, mas essa n\u00e3o \u00e9 a realidade do Brasil. Em um pa\u00eds de mentalidade escravocrata, que se ergueu pela desigualdade e se alimenta dela, e que at\u00e9 2014 fazia parte do Mapa da Fome da ONU, pol\u00edticas p\u00fablicas que garantam a igualdade de oportunidades e a equidade social ser\u00e3o necess\u00e1rias at\u00e9 que os problemas originados pela pobreza sejam superados. N\u00e3o h\u00e1 o que se discutir.<\/span><\/p>\n

Esse foi o \u00faltimo round do nosso embate. Dei gra\u00e7as aos c\u00e9us por ter chegado em casa e colocado fim naquela conversa t\u00e3o dif\u00edcil. Ufa! Fiquei exaurida. Quanta energia ruim!<\/span><\/p>\n

No dia seguinte, acordei pensando no Jos\u00e9 Saramago, mais precisamente no livro Ensaio sobre a cegueira. Assim como no romance do escritor portugu\u00eas, o Brasil est\u00e1 tomado por \u201cuma terr\u00edvel treva branca [que] vai deixando cegos, um a um, os habitantes\u201d que aqui vivem.<\/span><\/p>\n

Os pr\u00eamios e as homenagens recebidas pelo ex-presidente Lula no exterior s\u00e3o provas irrefut\u00e1veis da import\u00e2ncia do Bolsa Fam\u00edlia para a erradica\u00e7\u00e3o da fome e da mis\u00e9ria. Em 2015, durante entrevista ao programa Observat\u00f3rio da Imprensa, o soci\u00f3logo polon\u00eas Zygmunt Bauman ressaltou que \u201cningu\u00e9m al\u00e9m do Brasil conseguiu tirar 22 milh\u00f5es de pessoas da pobreza.\u201d<\/span><\/p>\n

Somente os brasileiros n\u00e3o enxergam isso. A cegueira causada pelo \u00f3dio de classes, a cultura do desprezo pelos mais pobres, o ego\u00edsmo e a estupidez n\u00e3o permitem.<\/span><\/p>\n

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Cr\u00f4nica<\/strong><\/h5>\n

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[\/vc_custom_heading][vc_column_text]Luana Tolentino \u00e9 professora e historiadora. \u00c9 ativista dos movimentos Negro e Feminista.<\/span>[\/vc_column_text][vc_empty_space empty_h=”2″][\/vc_column][\/vc_row]<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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