{"id":60586,"date":"2017-08-15T13:09:48","date_gmt":"2017-08-15T13:09:48","guid":{"rendered":"http:\/\/www.obeltrano.com.br\/?post_type=portfolio&p=60586"},"modified":"2017-08-21T19:01:21","modified_gmt":"2017-08-21T19:01:21","slug":"e-preciso-falar-de-crack","status":"publish","type":"portfolio","link":"https:\/\/www.obeltrano.com.br\/portfolio\/e-preciso-falar-de-crack\/","title":{"rendered":"\u00c9 preciso falar de crack"},"content":{"rendered":"

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\u00c9 preciso falar de crack<\/h1>\n

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Uma m\u00e3e guerreira, quatro filhos homens, dois na droga<\/p>\n

[\/vc_custom_heading][vc_column_text]<\/p>\n

Por Ana d\u00b4Angelo e Eliana Gomes<\/span><\/em><\/p>\n

\"\"<\/span><\/p>\n

 <\/p>\n

Era para ser uma mat\u00e9ria sobre \u201cas m\u00e3es do crack\u201d. T\u00edtulo sensacionalista, para os editores do O Beltrano comprarem a pauta. Ideia que tive depois da conversa que me derrubou a mil de metros da minha ligeira \u00f3rbita da raz\u00e3o, com uma m\u00e3e de quatro filhos homens, dois deles usu\u00e1rios de crack, um deles preso.<\/span><\/p>\n

O clima geral no pa\u00eds, quando do nosso papo, era ditado pela brutal desocupa\u00e7\u00e3o da cracol\u00e2ndia em S\u00e3o Paulo, e pela decis\u00e3o daquele prefeito de garantir na Justi\u00e7a o direito do poder p\u00fablico de internar compulsoriamente os dependentes qu\u00edmicos.<\/span><\/p>\n

E aqui, no Rio, Eliana Gomes, Dona Eli para n\u00f3s – seus patr\u00f5es duas vezes por semana -, sofrendo com as idas e vindas de Alexandre \u00e0 cracol\u00e2ndia carioca, e com Artur, o ca\u00e7ula, preso em Bangu. Os dois filhos mais novos de Dona Eli.<\/span><\/p>\n

Ela fala do ciclo do v\u00edcio como especialista. Para o meu ‘jornalismo indoor’, ela conta de sua primeira vez em Bangu. Das horas na fila para entrar no pres\u00eddio, do constrangimento da revista, de como teve que deixar sua bolsa no meio do mato para poder entrar, de como s\u00f3 abanou a m\u00e3o de longe pro filho nessa primeira vez.<\/span><\/p>\n

Conta tamb\u00e9m de como desmaiou porque \u201ca press\u00e3o subiu ou desceu, n\u00e3o me lembro\u201d, tamanha expectativa, tamanha decep\u00e7\u00e3o. \u201cVoc\u00ea pensa que isso \u00e9 pra bandido, n\u00e3o para o seu filho. Nunca\u201d.<\/span><\/p>\n

Do Alexandre, o mais velho dos dois menores, ela fala com mais esperan\u00e7a. \u201cTodo mundo gosta dele no bairro… tem tantos amigos. Conseguimos uma interna\u00e7\u00e3o em um s\u00edtio de religiosos. Ent\u00e3o come\u00e7ou a postar no face, ‘um dia sem’, ‘dois dias sem’, at\u00e9 o sexto dia. Os amigos torcendo. E parou. Ent\u00e3o eu liguei pra Ang\u00e9lica, mulher dele: cad\u00ea Alexandre? ‘Ah, n\u00e3o dormiu aqui hoje, n\u00e3o’. Pronto, acabou.\u201d<\/span><\/p>\n

\u201cComecei a perceber quando foi para oitava s\u00e9rie. Todas as professoras faziam queixas dele. N\u00e3o era malcriado, era agitado. Sa\u00eda da sala e ia bater tambor num lat\u00e3o de lixo. Um professor disse que precisava de ajuda porque comparavam ele sempre com o irm\u00e3o. Ent\u00e3o, fazia coisas pra chamar a aten\u00e7\u00e3o. Mas, a gente pobre, vai fazer o que? Hoje eu sei que psic\u00f3logo \u00e9 importante, mas com um monte de filhos, sem dinheiro, sem tempo… o tempo vai passando e, quando voc\u00ea v\u00ea, deu no que deu\u201d.<\/span><\/p>\n

A mat\u00e9ria que pensei primeiro, aquela ideal, descobri que n\u00e3o se sustentaria. N\u00e3o vale, acima de tudo, porque \u00e9 preciso dar voz a Dona Eli. \u00c9 preciso falar de crack, mas tamb\u00e9m da mulher negra, da rela\u00e7\u00e3o de patr\u00f5es com empregadas dom\u00e9sticas, de racismo, de maternidade, de como as drogas chegam, do desmonte da sa\u00fade p\u00fablica, da reforma trabalhista, da descriminaliza\u00e7\u00e3o da maconha. A vida de um dependente de crack e de sua fam\u00edlia est\u00e3o contaminados por esse turbilh\u00e3o.<\/span><\/p>\n

\u201cNo nascimento voc\u00ea j\u00e1 v\u00ea que vai ter dificuldades. Eu amamentava e descobri outra gravidez quatro meses depois. Eles tem a diferen\u00e7a de um ano e (o mais novo) acabou ficando de lado. Sempre no segundo plano. Vai crescendo assim. Fica com a vizinha, enquanto eu fico com o outro que anda. \u00c9 dif\u00edcil amar um que est\u00e1 no ber\u00e7o e o outro andando, quebrando tudo. Chegando na adolesc\u00eancia, voc\u00ea v\u00ea que t\u00e1 desviando. E a mentira \u00e9 o primeiro sintoma da droga\u201d.<\/span><\/p>\n

Relato de m\u00e3e. Porque s\u00f3 m\u00e3e para abra\u00e7ar todos os problemas de um filho e achar que s\u00e3o, de alguma maneira, fruto da sua aus\u00eancia ou do seu erro.<\/span><\/p>\n

\u201cNa escola, no mesmo hor\u00e1rio, na mesma s\u00e9rie: Alexandre e Ancelmo. O primeiro \u00e9 Alan e o ca\u00e7ula \u00e9 Artur. Primeiro \u00e9 Alan, depois Ancelmo, Alexandre e Artur\u201d.<\/span><\/p>\n

Dona Eli defende a descriminaliza\u00e7\u00e3o da maconha como forma de substituir gradualmente o uso do crack por uma droga menos nefasta. O sistema p\u00fablico de sa\u00fade n\u00e3o pode dar rem\u00e9dio nem internar, somente em caso de surto psic\u00f3tico. E nunca tem ‘o psic\u00f3logo’ prometido para apoiar as fam\u00edlias. Nessa hist\u00f3ria, os pobres s\u00e3o v\u00edtimas.S\u00f3 nessa?<\/span><\/p>\n

Como Dona Eli consegue fazer nossa comida, limpar nosso apartamento e ainda brincar com nosso filho, as brincadeiras mais legais, enquanto n\u00e3o sabe o paradeiro do Alexandre?<\/span><\/p>\n

Durante a Marcha das Mulheres Negras no Rio, uma foto de uma empregada na janela daqueles apez\u00f5es da Avenida Atl\u00e2ntica \u00e9 tocante. Aquela mulher negra vestida de branco parece bater palma para as colegas no asfalto.<\/span><\/p>\n

Mulheres negras vestidas de branco, servindo as brancas. At\u00e9 quando vamos perpetuar essa rela\u00e7\u00e3o? Um sopro de debate se deu quando alunos da arquitetura da UFMG se recusaram a projetar uma casa com depend\u00eancias para oito empregados em uma disciplina chamada \u201cCasa Grande\u201d.<\/span><\/p>\n

A \u00faltima edi\u00e7\u00e3o da FLIP tamb\u00e9m deu algum alento. Antes feita da elite para a elite, a festa da literatura deste ano foi invadida por negros e outras minorias. At\u00e9 quando vamos negar e resistir a discutir nosso racismo e nossa sinhazice? Eu me sinto a patroa constrangida, mas isso n\u00e3o \u00e9 o bastante.<\/span><\/p>\n

Na Internet, os grupos de apoio aos familiares de dependentes qu\u00edmicos s\u00e3o um festival de frases afirmativas e de auto-ajuda para quem n\u00e3o pode contar com nada, nem ningu\u00e9m. N\u00e3o h\u00e1 como barrar a dissemina\u00e7\u00e3o de uma droga t\u00e3o barata e t\u00e3o imediatamente viciante. Alguns me prometeram depoimentos, mas acabaram desistindo. O sentimento \u00e9 de pouca esperan\u00e7a. Para a mat\u00e9ria e para essas pessoas.<\/span><\/p>\n

A nota em resposta a nosso pedido do Minist\u00e9rio da Sa\u00fade \u00e9 protocolar. \u201cO CAPS Ad, Centro de Aten\u00e7\u00e3o Psicossocial \u00c1lcool e Drogas, \u00e9 quem faz o atendimento dos casos de depend\u00eancia do crack. A popula\u00e7\u00e3o de 15 estados passa a contar, a partir de agora, com um incremento de R$ 26,2 milh\u00f5es para a assist\u00eancia aos dependentes de crack\u201d, diz a nota de outubro de 2015, do governo federal. Nenhuma novidade desde ent\u00e3o, pelo contr\u00e1rio, sabemos da pen\u00faria da sa\u00fade e educa\u00e7\u00e3o.<\/span><\/p>\n

\u201cQuem \u00e9 que vai curar esse povo? N\u00e3o tem rem\u00e9dio que cura o crack… ent\u00e3o \u00e9 uma decep\u00e7\u00e3o. Ele voltou muito bem. Estava entregando curr\u00edculo. A\u00ed come\u00e7am as mentiras. Ele tem tr\u00eas filhos, Vitor, com 9, Mateus, com 4 e a nen\u00e9m de 6 meses. A mulher dele trabalha no posto de gasolina. O beb\u00ea vai com ela pro trabalho. Mas quem abre a porta de casa quando Alexandre volta dos dias de crack \u00e9 a m\u00e3e\u201d, diz Dona Eli.<\/span><\/p>\n

Ent\u00e3o, que o texto se transforme, ao menos, numa mat\u00e9ria-manifesto. Por que cargas d\u00b4agua n\u00e3o damos conta de arrumar nossas casas, fazer nossas comidas, cuidar de nossos filhos? Ah, nossos trabalhos! Que diacho de trabalho nos impede de fazer isso? Que a coisa vai ladeira abaixo, nem resta d\u00favida. Somos escravagistas, e algu\u00e9m ainda acredita na livre negocia\u00e7\u00e3o patr\u00e3o e empregado?<\/span><\/p>\n

Eu s\u00f3 posso desejar que os filhos e netos de Dona Eli tenham escolhas a fazer num futuro pr\u00f3ximo, porque haver\u00e1 pol\u00edticas p\u00fablicas de inclus\u00e3o social e educa\u00e7\u00e3o. Que a maconha seja descriminalizada. Que o apoio aos familiares de dependentes qu\u00edmicos venha verdadeiramente do poder p\u00fablico e n\u00e3o de religi\u00f5es ou picaretas da psicologia.<\/span><\/p>\n

Dona Eli me ensinou a brincar com meu filho, experiente que \u00e9, m\u00e3e de quatro homens. D\u00e1 uma lata com colher de pau e ele fica superfeliz, enquanto eu muitas vezes corria atr\u00e1s de algum livro de pediatra espanhol.<\/span><\/p>\n

Na colonial S\u00e3o Jo\u00e3o Del Rei, onde nasci, acontecia de ser confundida com a empregada da casa. Eu de cabelo sarar\u00e1 e pele morena. A Zilma, loura de olho verde. Mas quem dormia do lado de fora de casa era ela, numa casinha com banheiro ao lado.<\/span><\/p>\n

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