{"id":63388,"date":"2017-09-11T16:30:54","date_gmt":"2017-09-11T16:30:54","guid":{"rendered":"http:\/\/www.obeltrano.com.br\/?post_type=portfolio&p=63388"},"modified":"2017-09-12T14:06:17","modified_gmt":"2017-09-12T14:06:17","slug":"terra-mulher-e-o-amor-no-sertao-mineiro","status":"publish","type":"portfolio","link":"https:\/\/www.obeltrano.com.br\/portfolio\/terra-mulher-e-o-amor-no-sertao-mineiro\/","title":{"rendered":"A terra, a mulher e o amor no sert\u00e3o mineiro"},"content":{"rendered":"

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A terra, a mulher e o amor no sert\u00e3o mineiro<\/h1>\n

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Dez dias de caminhada no universo de Guimar\u00e3es Rosa<\/span><\/p>\n

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Por Agatha Azevedo<\/i><\/span><\/p>\n

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Foto: Agatha S. Azevedo<\/figcaption><\/figure>\n

Me lembro que, quando ouvi o Almir Paraka, idealizador d\u2019O Caminho do Sert\u00e3o, contar do sonho de fazer uma caminhada no mais \u00e1rido sert\u00e3o, revivendo as andan\u00e7as de Riobaldo no livro \u201cGrande Sert\u00e3o: Veredas\u201d, de Guimar\u00e3es Rosa, tudo parecia imposs\u00edvel. Mas, em 2017, o projeto chegou \u00e0 sua quarta edi\u00e7\u00e3o. Entre os dias 7 e 17 de julho, percorremos 176 quil\u00f4metros, da Vila de Sagarana, em Arinos, \u00e0 Chapada Ga\u00facha, no Noroeste de Minas Gerais.<\/span><\/p>\n

Este relato traz um pouco dessa aventura, sem a pretens\u00e3o de descrever inteiramente o que \u00e9 imergir nestas terras. Fa\u00e7o, aqui, um esfor\u00e7o de s\u00edntese das hist\u00f3rias de luta e das sensa\u00e7\u00f5es que perpassaram o processo. Antes de mais nada, ele \u00e9 um convite \u00e0 caminhada.<\/span><\/p>\n

Terra <\/b><\/span><\/p>\n

Sert\u00e3o \u00e9 terra de caliandra, de gente que, como a flor do sert\u00e3o, resiste ao ambiente in\u00f3spito com delicadeza e beleza. Nos rostos, marcas de sol, castigo e alento. E a sa\u00fade de quem n\u00e3o consome produtos industrializados e planta o pr\u00f3prio alimento. Gente que planta, benze e luta para manter tradi\u00e7\u00f5es.<\/span><\/p>\n

Um dia antes de iniciar a nossa caminhada, logo na chegada a Sagarana, fui \u00e0 casa de ‘seu’ Zezinho. Do alto de seus sessenta e poucos anos, ele anda de bicicleta, cuida da horta na escola regional e acalma cora\u00e7\u00f5es aflitos com sua calma e bondade. Com um sorriso no rosto, ele nos recebeu de bom grado em pleno s\u00e1bado.<\/span><\/p>\n

Meu corpo e minha alma j\u00e1 vinham perturbados h\u00e1 um tempo. Foi assim que eu, de religiosidade duvidosa, me vi ao lado deste senhor, de olhos fechados, recebendo b\u00ean\u00e7\u00e3os silenciosas e sentindo o peso da vida fora daquelas terras se afastando de mim.<\/span><\/p>\n

Depois de nos ‘rezar’, seu Zezinho nos falou da tradi\u00e7\u00e3o de benzer as pessoas, que vem se perdendo por conta do fanatismo religioso e da falta de interesse dos jovens pela cultura tradicional. Ele explicou que, sendo sobrinho de benzeiro, sempre se interessou pelo dom. Mas, como manda a tradi\u00e7\u00e3o, n\u00e3o se pode ensinar a reza para outra pessoa.<\/span><\/p>\n

De tanto insistir, ele conseguiu do tio a promessa de que, quando sua hora chegasse, o livro com todas as rezas seria deixado para a fam\u00edlia. O caderno, por\u00e9m, terminou sendo queimado pela prima de seu Zezinho, que se converteu e, convencida pela f\u00e9 divergente, ateou fogo nas palavras de seu pai.<\/span><\/p>\n

A frase que se repetia na minha cabe\u00e7a era \u2018respeitar os tempos\u2019. No sert\u00e3o, os tempos s\u00e3o outros. A hora de comer \u00e9 diferente, acordamos bem mais cedo, o ritmo da vida passa em outra frequ\u00eancia e o pr\u00f3prio caminhar \u00e9 espec\u00edfico, quest\u00e3o que eu s\u00f3 descobri ap\u00f3s o primeiro dia, quando vi que eu teria que diminuir o passo para seguir avan\u00e7ando. Como na vida, o caminhar \u00e9 retroceder um pouco para avan\u00e7ar e chegar mais longe.<\/span><\/p>\n

Vila de Sagarana \u00e9 ponto de partida dos caminhantes do projeto. Com cerca de 500 habitantes, h\u00e1 ritual e mito em cada gr\u00e3o daquele lugar. Nele se fez pol\u00edtica p\u00fablica, reforma agr\u00e1ria, divis\u00e3o de terras. A regi\u00e3o lida com diversos problemas ocasionados pela distribui\u00e7\u00e3o das terras pelo Instituto Nacional de Coloniza\u00e7\u00e3o e Reforma Agr\u00e1ria (Incra), que desconsiderou as caracter\u00edsticas culturais e agr\u00edcolas das fam\u00edlias assentadas.<\/span><\/p>\n

Na nossa caminhada, estivemos em diversos assentamentos camponeses que passaram por processo de grilagem. Ouvimos relatos sobre como, nessas terras, ser agricultor familiar e produzir longe do agroneg\u00f3cio e de suas cercas e tecnologias mal\u00e9ficas \u00e0 sa\u00fade e ao meio ambiente \u00e9 praticamente um crime.<\/span><\/p>\n

O sert\u00e3o \u00e9 sol. E a chuva, visitante ocasional. Andamos com tecnologia e infraestrutura mas, muitas vezes, a \u00fanica coisa que quer\u00edamos era \u00e1gua.<\/span><\/p>\n

No sert\u00e3o est\u00e3o os donos do agroneg\u00f3cio que fizeram do munic\u00edpio de Buritis o terceiro maior exportador de soja do estado. Justo nesta regi\u00e3o onde, segundo os fazendeiros e grileiros de terra, \u2018ningu\u00e9m queria morar porque n\u00e3o tem \u00e1gua\u2019. E, hoje, se veem hectares e mais hectares de monocultura. O que \u00e9 ter terra se falta \u00e1gua para o plantio?<\/span><\/p>\n

Camila, moradora da regi\u00e3o e filha de Jorge, militante hist\u00f3rico, conta que a \u00e1gua \u00e9 interrompida diretamente das nascentes, que por raz\u00f5es extra-legais (o famoso senso de \u00e9tica el\u00e1stico) est\u00e3o nas terras privadas dos grandes produtores. O conflito \u00e9 gerado porque essa \u00e1gua n\u00e3o chega ao pequeno produtor. Mas lutar contra os poderosos locais \u00e9 perigoso. O pai de Camila est\u00e1 preso desde mar\u00e7o de 2016 por ter ousado travar essa batalha.<\/span><\/p>\n

Por outro lado, em toda casa que passamos fomos recebidos com fartura de comida e carne, t\u00e3o dif\u00edceis na regi\u00e3o. A hospitalidade genu\u00edna e sinal de alegria para com quem chega. Cada prato preparado tinha sabor de aten\u00e7\u00e3o e dedica\u00e7\u00e3o. Os caminhantes sempre tiveram o melhor que a comunidade poderia oferecer. H\u00e1 amor e for\u00e7a nesses pequenos gestos.<\/span><\/p>\n

H\u00e1 quem diga, num estere\u00f3tipo err\u00f4neo, que n\u00e3o d\u00e1 para plantar no sert\u00e3o. Provavelmente, os mesmos que grilaram o primeiro hectare de terra, descumprindo a legisla\u00e7\u00e3o brasileira e atentando contra a fun\u00e7\u00e3o social que a terra deveria ter. Na contram\u00e3o da explora\u00e7\u00e3o dos recursos naturais pelo capital, est\u00e1 a agrofloresta da fam\u00edlia de Tico, em Buraquinhos, onde h\u00e1 gera\u00e7\u00e3o de alimento e renda sem degrada\u00e7\u00e3o ambiental.<\/span><\/p>\n

O cerrado \u00e9 a maior forma\u00e7\u00e3o sav\u00e2nica da Am\u00e9rica do Sul, ocupa mais de 20% do Brasil e \u00e9 um bioma quase t\u00e3o grande quanto a Amaz\u00f4nia. No Parque Nacional Serra das Araras, vimos diversos frutos, \u00e1rvores e rastros de animais que s\u00f3 existem neste bioma. Segundo o Bergs, um dos guias do Caminho, \u201ca gente s\u00f3 cuida daquilo que a gente conhece\u201d.<\/span><\/p>\n

Atravessamos o rio Urucuia no domingo, o primeiro dia de caminhada. Naquele momento, meu corpo inteiro se conectava com a m\u00e3e natureza. Nos p\u00e9s sujos de terra, muitos esparadrapos se misturavam \u00e0s bolhas e \u00e0 vontade de imergir naquelas \u00e1guas e ser batizada de sert\u00e3o. Entendi, naquele momento, o valor da terra e da \u00e1gua pr\u2019aquela gente.<\/span><\/p>\n

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Foto: Agatha S. Azevedo<\/figcaption><\/figure>\n

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Foto: Agatha S. Azevedo<\/figcaption><\/figure>\n

A mulher<\/b><\/span><\/p>\n

Esta edi\u00e7\u00e3o do Caminho foi mais de 50% feminina. Durante todo o percurso, pude conviver com mulheres muito guerreiras, e valorizo cada trecho de suas vidas que me foi confidenciado. Desde a alegria de ouvir que a m\u00e3e da Denise conquistou o sonho da casa pr\u00f3pria, at\u00e9 o simples compartilhar de momentos com a Mari, sempre t\u00e3o generosa e cuidadosa.<\/span><\/p>\n

Dentre as caminhantes, conheci a Cida, filha de camponeses. Ela teve coragem de ir para a cidade grande militar pelo campo e lutar nos sindicatos para que o modo de vida da agricultura familiar permanecesse. Vinda de uma fam\u00edlia grande, com 8 filhos, sendo 5 meninas, a felicidade era o maior bem que eles mantinham.<\/span><\/p>\n

Os pais de Cida viviam aos mandos e desmandos do fazendeiro dono da propriedade, que impedia ela e os irm\u00e3os de estudarem. Em Buraquinhos, ao olhar a casa de adobe da fam\u00edlia de Tico, ela voltou no tempo e me permitiu ouvir sobre sua vida. O local onde ela viveu com a fam\u00edlia na inf\u00e2ncia foi queimado na frente de todos, por jagun\u00e7os, e ningu\u00e9m p\u00f4de fazer nada.<\/span><\/p>\n

Ainda em Sagarana, conheci a hist\u00f3ria de Helena, cozinheira respons\u00e1vel pela alimenta\u00e7\u00e3o dos Caminhantes. Orgulhosa, ela me contou sobre a vinda para Sagarana para buscar uma vida melhor e mais tranquila, e a alegria de ter uma atribui\u00e7\u00e3o t\u00e3o grande. Para ela, este trabalho \u00e9 emancipador e importante, n\u00e3o s\u00f3 pela gera\u00e7\u00e3o de renda, mas pela oportunidade de se fazer grande e n\u00e3o ouvir de um homem que ela n\u00e3o pode ou n\u00e3o consegue liderar.<\/span><\/p>\n

Na maioria dos pousos pelos quais passamos, a chefe do lar era uma senhorinha forte e guerreira, que nos recebia com bom alimento. Uma das mais impressionantes foi Dona Geralda. Oralidade, mist\u00e9rio e enfrentamento se mesclam no modo curiosamente bem humorado com o qual ela descreve as vezes que escapou da morte. Dona Geralda chegou a Arinos fugindo da mis\u00e9ria na d\u00e9cada de 60. O que a senhorinha de cabelos grisalhos buscava era paz. Por\u00e9m, os militares da ditadura interromperam este sonho logo no in\u00edcio de sua vida na regi\u00e3o.<\/span><\/p>\n

Sob a acusa\u00e7\u00e3o de v\u00ednculo com o comunismo, a Fazenda Menino, onde ela morava com os filhos, vivia cercada de militares. Por diversas vezes, ela enfrentou metralhadoras carregadas. Tentaram assassin\u00e1-la, mas a bala nunca a alcan\u00e7ou. Para entender o que foi sua vida e o Brasil daquela \u00e9poca, s\u00f3 conhecendo-a pessoalmente. As portas de sua casa est\u00e3o sempre abertas para “os meninos do sert\u00e3o”, como ela chama os andarilhos que passam pela regi\u00e3o. De tudo que levo das mulheres que compartilharam estes dez dias comigo, ressalto a for\u00e7a e o amor pela vida.<\/span><\/p>\n

O amor<\/b><\/span><\/p>\n

Me abri inteira e esperei que o Caminho me atravessasse. Respeitar os tempos, me encontrar e me reencantar comigo mesma e com a vida. Descobrir a beleza e os desafios de ser eu. Sentir as prova\u00e7\u00f5es e ver a empatia nascer. Sentir materializar o amor e os sentimentos mais sutis e doces nos gestos cotidianos. Abrir os bra\u00e7os para experi\u00eancias, antes t\u00e3o distantes, e me permitir. Tudo isso, e mais uma dose do intang\u00edvel, indescrit\u00edvel, n\u00e3o concreto, po\u00e9tico. Na minha bagagem, eu queria levar tudo o que o Caminho quisesse e tivesse a generosidade de me dar.<\/span><\/p>\n

Eu senti o amor de diversas formas durante a caminhada. Na confian\u00e7a dos que me deixaram cuidar de bolhas nos p\u00e9s, e na dedica\u00e7\u00e3o com a qual cuidaram das minhas. Na solidariedade de carregarem a minha mochila quando eu n\u00e3o dava mais conta e na cumplicidade de ir caminhando junto at\u00e9 o final do trajeto do dia. Amor no gesto de emprestar o t\u00eanis, a toalha, a pasta de dente, o esparadrapo, o algod\u00e3o, a pomada, o tempo, os ouvidos. Amor ao sentir o frio cessar de noite e me sentir coberta. Amor sincero, destes adormecidos na vida da cidade, destes que n\u00e3o se compram.<\/span><\/p>\n

Aceitei o convite, deixei o sert\u00e3o entrar. E \u00e9 por isso que este relato se faz verdadeiro e em primeira pessoa. Ele \u00e9 nada mais que uma hist\u00f3ria de amor num sem-fim de sonhos e desejos. Apreendi tonalidades de vida, verde, verso e sonho que n\u00e3o cabem na palavra. Vi a faceta mais pura do amor. Nunca recebi tanto, nunca senti tanta esperan\u00e7a vinda do outro que acaba de me conhecer. Espero ter podido dar-me inteira tamb\u00e9m, como recebi.<\/span><\/p>\n

Recebi o alimento das m\u00e3os de quem luta para que o agroneg\u00f3cio n\u00e3o siga avan\u00e7ando. Fui cuidada por quem caminha sol a sol no cerrado. Fui aben\u00e7oada por doses imensur\u00e1veis de generosidade. Tudo o que eu recebia, tentava repassar. Foi assim que me vi ajudante do seu Bergs, boa ouvinte, e vi cart\u00f5es de mem\u00f3ria, sapatos, cantis, meias e rem\u00e9dios espalhados por a\u00ed. Ouvi e, abrindo minhas convic\u00e7\u00f5es para a interven\u00e7\u00e3o do outro, vi que a vereda linda, na verdade, estava muito vazia. Vi tamb\u00e9m que o que h\u00e1 de mais belo na tradi\u00e7\u00e3o oral e na vida sertaneja est\u00e1 amea\u00e7ado. Vi tanta coisa que n\u00e3o cabe no relato.<\/span><\/p>\n

Voltei decidida a amar mais, e nunca tive tanta certeza do que queria da minha vida pessoal. De tempos em tempos, quando meu foco se perder diante das injusti\u00e7as do mundo e da brutalidade da selva de asfalto, pretendo entrar em rota de fuga e ir molhar meus p\u00e9s na vereda. \u00c0s vezes, \u00e9 s\u00f3 olhar para o lado, que o amor e a seguran\u00e7a que buscamos est\u00e3o diante dos nossos olhos. Como diria Rosa, o que a vida quer da gente \u00e9 coragem.<\/span><\/p>\n

A partir de certo momento, me despi de equipamentos, coberturas, narrativas e da cren\u00e7a de que eu poderia registrar na totalidade o que foi a travessia do Caminho do Sert\u00e3o. No primeiro dia, me permiti um banho no Rio Urucuia, onde tudo o que importava era sentir o batismo daquelas \u00e1guas, sem registro. No \u00faltimo dia, fiz o impens\u00e1vel. Subi ao V\u00e3o dos Buracos de noite, sem c\u00e2mera, despretensiosa, tomada pela vontade de compartilhar o momento.<\/span><\/p>\n

Durante o Caminho, entendi que n\u00e3o registrar \u00e9 tamb\u00e9m respeitar os tempos, e que para receber relatos \u00e9 preciso coragem e confian\u00e7a. Na pausa, vi que comunicar \u00e9 ato de corpo inteiro. Que transborda. Aceitei as pequenas perdas de registro. Tempo, um presente que o Sert\u00e3o me deu sem pedir nada em troca.<\/span><\/p>\n

Agatha Azevedo \u00e9 jornalista formada pela UFMG, fot\u00f3grafa e co-fundadora da rede Jornalistas Livres, na qual pertence \u00e0 equipe nacional de editores e coordena o n\u00facleo mineiro do projeto.<\/span><\/p>\n

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