Mata virgem

"O avassalador encontro de grande parte da população com o ativismo digital foi como um fogo morro acima em mato seco". Michel Montandon escreve sobre a internet, redes sociais e esta eleição


Por Michel Montandon

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Em meados de 2017, o sociólogo Juliano Spyer, que passou 15 meses vivendo e pesquisando em uma pequena vila do interior da Bahia, lançou o livro Mídias Sociais no Brasil Emergente, financiado pelo Conselho Europeu de Pesquisa. O livro traz uma leitura importante sobre o uso das ferramentas digitais no Brasil. Existe um capítulo que fala especificamente sobre o uso político do Facebook e do WhatsApp. A pesquisa, realizada entre 2013 e 2014 mostra o uso e apropriação das ferramentas digitais na micropolítica local, porém, segundo sua pesquisa, existia um distanciamento sobre a macropolítica nacional, os protestos de junho de 2013 que abalaram as grandes cidades do Brasil não chegaram a se tornar assuntos relevantes nas conversas digitais dos moradores da pequena vila. Tudo indica, entretanto, que depois de 2018, esta relação tenha mudado categoricamente no universo semântico das classes emergentes. É possível perceber que depois desta eleição, não só as classes emergentes, mas toda uma fatia de público, de todas as classes sociais, que se apropriou das ferramentas digitais tardiamente, seja por falta de acesso ou por ainda estarem em processo de letramento digital, como os aposentados e pessoas mais idosas por exemplo, foram inseridas de forma abrupta e enviesada no ciberativismo. De uma hora para outra, um turbilhão exorbitante de informação política ideológica ligada à notícias falsas, teorias conspiratórias, pesquisas e imagens manipuladas, ameaças, discursos xenófobos, racistas, sexistas, promessas vagas, nacionalismo exacerbado passou a circular e ser circulado por estas redes, um batismo violento ao ativismo digital.

Para seguir as pistas do que aconteceu no Brasil, temos que pensar em dois exemplos ocorridos recentemente o Brexit, saída da Inglaterra do mercado comum europeu e a eleição de Donald Trump como presidente dos EUA. Em ambos os movimentos houve denúncias sobre manipulação e interferência na comunicação digital, russos foram acusados, Mark Zuckerberg, CEO do Facebook foi chamado a dar explicações nos Comitês de Justiça e de Comércio do Senado dos Estados Unidos e no parlamento Europeu. A start up Cambridge Analytica, consultoria digital pertencente ao bilionário conservador Robert Mercere ligada a Steve Bannon, que prestou consultoria a Donald Trump e ao Brexit, logo em seguida foi acusada e processada por uso indevido de dados pessoais e manipulação e teve que fechar as portas.

É importante explicar melhor como funciona a máquina de manipulação digital operada por empresas como a Cambridge Analytica. Em ferramentas como o Facebook (2 bilhões de usuários no mundo) e Twiter (284 milhões de usuários no mundo) estas ferramentas criam perfis para cada um dos usuários, no caso da eleição de Trump, foram criados mais de 200 milhões de perfis, uma para cada eleitor norte americano. Estes perfis são criados com base no levantamento de dados muito específicos, como por exemplo, com quem você se conecta, o que você publica e curte, como você se desloca pelo mundo ou até mesmo quais os medicamentos você compra, haja vista a necessidade de fornecer o CPF para ganhar alguns descontos em farmácias, prática comum nos Estados Unidos. Com base nestas informações cruzadas e com uso intenso de inteligência artificial e mega estruturas computacionais, os big data, a leitura desta gama de dados é processada para criar linhas do tempo diferentes para cada um dos usuários, ou seja, narrativas individuais que mesclam notícias compartilhadas por conhecidos com publicações patrocinadas, de produtos ou mesmo projetos ideológicos como o Brexit ou Trump, atuando assim, diretamente na subjetividade da audiência. No WhatsApp agem milhares de bots (robôs), programas de computador que interagem com as mídias digitais, perfis falsos que publicam incansavelmente qualquer conteúdo que o programador tenha lhes comandado. Estes bots tem um grau de penetração tão grande que podem mesmo produzir memes e pequenos vídeos e distribuí-los na rede de forma autônoma. É sabido que antes de fechar as portas a própria Cambridge Analytica tinha planos para atuar no Brasil, e que existem muitas outras consultorias parecidas atuando no mercado internacional. Além dos dados geográficos, demográficos e econômicos estas consultorias de comunicação digital atuam principalmente nos dados psicográficos, entendendo como se dá, por meio da subjetividade das pessoas a formação do ódio, da adesão ou aversão a certa ideia. A máquina contemporânea de propaganda digital sabe muito bem se você é uma pessoa mais amável, colaborativa, raivosa ou neurótica, e utiliza estas informações para criar processos de subjetivação.

E o Brasil? Sim, no Brasil o acesso à internet das classes emergentes, e o grande número de recém-chegados na era digital continuava crescendo, mas era um território ainda inexplorado nas questões políticas eleitorais, como indica a pesquisa de Spyer, uma verdadeira mata virgem a ser tratorada pela máquina de fake news. Os usuários que acompanharam gradativamente o nascimento e o desenvolvimento da internet, ou passaram por processos de leitura crítica da mídia tendem a ter uma visão mais cética do que os que chegaram mais tarde e já encontraram as ferramentas digitais mais desenvolvidas, com alto grau de sofisticação. Diante dos exemplos vividos há poucos anos pelo Brexit e eleição de Trump, podemos ao menos desconfiar que as informações privilegiadas, aquelas que os grandes players internacionais do mercado digital, Google, Facebook, Twitter possuem sobre a gente, foram usados de forma indiscriminada na campanha política brasileira de 2018.

Cavalo Motor

O cavalo de troia veio de caminhão. A invasão de notícias falsas propagadas pelo WhatsApp nas classes emergentes no Brasil ganha vigor e capilaridade com a greve dos caminhoneiros em maio de 2018, uma greve forte, que parou e mobilizou todo o país e concentrou nas redes sociais uma imensa audiência, dias antes do início da copa do mundo. A greve dos caminhoneiros mexeu com quase todos e criou um novo fluxo de conexões nas redes sociais. As cidades estavam paradas, patrões e funcionários dividiram os mesmos grupos de WhatsApp, afinal as pessoas precisavam chegar ao trabalho ou justificar suas ausências, grupos discutiam quais postos estavam fornecendo combustível, quais estradas estavam liberadas. Rapidamente os mesmos grupos foram tomados por discussões políticas de viés patriótico e intervencionista. Para as classes emergentes e para os recém-chegados à era digital era o primeiro movimento político em redes digitais que participavam, um encontro tardio com um ciberativismo.

É sempre bom lembrar que o Brasil é um país continental, mas com uma estrutura de comunicação centralizada e hegemônica, formada por oligopólios com base no eixo Rio-São Paulo. A novela das nove que um ribeirinho do Amazonas assiste é quase sempre filmada em algum bairro de classe média alta do Rio de Janeiro ou São Paulo. Os jornais diários e os programas dominicais são verdadeiros cânones que se repetem com a mesma estrutura e linguagem há décadas. Os principais partidos e suas coligações, PSDB e PT, possuíam nesta eleição o maior tempo de televisão, cinco minutos e meio para o primeiro e dois minutos e meio para o segundo. As coligações majoritárias apostaram grande parte de suas fichas, ou melhor, suas moedas, no caro e moroso processo da campanha televisiva. Enquanto isso, Bolsonaro costurava uma aliança com Steve Bannon, nada mais do que o diretor executivo da campanha presidencial de Donald Trump, estrategista do Brexit e consultor de partidos de extrema direita europeus.

Em uma mensagem publicada no twitter, no início de agosto, Eduardo Bolsonaro, filho de Jair Bolsonaro, aparece em uma foto junto à Steve Bannon, e diz (sic) “Conversamos e concluímos ter a mesma visão de mundo. Ele afirmou ser entusiasta da campanha de Bolsonaro e certamente estamos em contato para somar forças, principalmente contra marxismo cultural.”. Segundo o mesmo, ele teria ido pegar algumas dicas sobre internet com Bannon, os desavisados podem até achar que Bolsonaro Filho foi aprender a fazer gifs animados, mas para quem está acompanhando como o aumento vertiginoso de mensagens falsas estão atuando nesta eleição podem desconfiar que existe algo mais. Milhares de usuários brasileiros que até então não discutiam política pelas redes sociais se depararam repentinamente com a maior ferramenta de geração e propagação de ódio, mentira e dissimulação que vimos no Brasil nos últimos anos.

A grande mentira

No dia 21 de junho, em um evento realizado pelo TSE junto à União Europeia, com a presença da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, do ministro das Relações Exteriores, Aloysio Nunes, e o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Claudio Lamachia, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luiz Fux afirmou que o que a Justiça Eleitoral poderá eventualmente cancelar o resultado da eleição se esse resultado for decorrência da difusão massiva de notícias falsas. Diante do que estamos presenciando nesta eleição, dos abusos e excessos de todo o tipo que circulam nas redes, seria esta declaração de Fux a maior das fake news? A justiça brasileira estaria mesmo disposta a averiguar e julgar campanhas como a de Jair Bolsonaro, que se aliaram a marqueteiros digitais conhecidos no mundo inteiro por suas táticas mentirosas de disseminação do ódio?

Vivemos em um país extremamente complexo e desigual, com problemas graves elementares no que tange a educação e leitura crítica, junte a este cenário uma crise econômica, insatisfação geral da população e desejo de mudança e temos um verdadeiro caos informacional, onde nada ou ninguém é digno de confiança, a menos que esteja replicando o mesmo que você. O avassalador encontro de grande parte da população com o ativismo digital foi como um fogo morro acima em mato seco, se alastrou de forma rápida e violenta. Hoje temos milhões de pessoas distribuindo mentiras de forma deliberada, sem aceitar contra argumentação, mesmo que científica, da imprensa formal e até mesmo teológica. O dano está feito.

Michel Montandon de Oliveira – Diagramador, pesquisador e professor – Formado em Comunicação Social pela PUC-MG e Mestre em Estudo de Linguagens pelo CEFET-MG