O jeito é ir pra rua

Com movimento fraco nos shoppings populares, ambulantes voltam a ocupar o hipercentro


Por Lucas Simões

Foto: Lucas Simões – Lojas fechadas no Shopping Uai, próximo à Rodoviária

Nove meses após iniciar a retirada dos camelôs do hipercentro de Belo Horizonte para concentrá-los em shoppings populares, a Prefeitura admite que não conseguiu acabar com o que chama de “problema”. Basta uma volta rápida pela Praça Sete e ruas adjacentes para encontrar dezenas deles.

Para as vagas nos shoppings, a Prefeitura cadastrou, no ano passado, 1.002 trabalhadores. Até o momento, 500 deles foram sorteados para se instalar em boxes de três metros quadrados nos shoppings Uai, ao lado da Rodoviária, e O Ponto, em Venda Nova. Ainda assim, nos dois shoppings, muitos boxes — também chamados de bancas — estão fechados ou funcionando parcialmente.

Márcio Pereira, 39, vende na rua óculos de sol, doces, cigarros, prendedores de cabelo e livros usados. Apesar de ter sido sorteado no ano passado para ocupar um box, ele diz que ainda depende do comércio ambulante para pagar o aluguel de R$ 350 no Aglomerado da Serra e “conseguir comer todo dia”.

“O problema é que no shopping não circula nosso público. Eu vendo coisa para pobre e tiro R$ 30 em média por dia. No shopping não consigo nada porque não dá movimento. Desde janeiro tem uma pessoa no shopping pra mim, mas até agora o dinheiro só vem da rua”, diz o camelô, que exerce o mesmo ofício há 18 anos.

 

Foto: Lucas Simões – Antônio Pascoal divide sua jornada de trabalho entre a pequena loja no Shopping Uai e as ruas do hipercentro

O proprietário dos dois shoppings populares, Elias Tergilene, admite que “falta ajustar os ponteiros” para que os camelôs consigam se estabelecer nos boxes, mas enxerga o processo com naturalidade. “Chegamos a um acordo com a Prefeitura para eles pagarem um aluguel mensal de R$ 30 durante cinco anos, um valor baixíssimo, justamente para que possam se estabelecer com calma. Hoje, há um desnível de competição entre os produtos que já eram vendidos nos shoppings e as mercadorias dos camelôs, mas muitos estão se readequando, investindo nos boxes novos, comprando mercadorias diferentes. Isso demanda um certo tempo, é natural”, avalia o empresário.

Uma adaptação que Antônio Pascoal, 62, tem tentado fazer à custa de uma jornada de doze horas de trabalho. Ele gastou R$ 300 para incrementar as vendas no box do Shopping Uai, adquirindo camisas, bonés e capinhas para celular. De manhã e à tarde ele vende no shopping, mas à noite precisa rodar as ruas do hipercentro para “pagar os vencimentos”.

“O shopping não é ruim, só que não está dando movimento. Eu comprei umas coisas mais sofisticadas para colocar aqui. Mas, movimento mesmo, só para quem vende coisas mais caras, eletrônicos. Então, eu passo um tempo aqui, chego 8h30 e fico até 15h30. Depois preciso ir pra rua, até umas 20h30”, diz Pascoal.

 

Foto: Lucas Simões

Nesse dilema, muitos camelôs chegam a vender nas redondezas do próprio Shopping Uai, aproveitando o fluxo de 35 mil passageiros que circulam por dia na região, e do movimento flutuante de dois milhões de potenciais consumidores que passam pelo hipercentro diariamente. “Na boca da Rodoviária, passam dez, vinte, trinta pessoas na minha frente por minuto. Meu produto é cigarro San Marino e isso a gente só vende na rua. Eu vou fazer o que se não tenho como competir no shopping e nem como investir em produto bom?”, diz Wenderson Leandro, de 34 anos.

O medo da fiscalização, o popular “rapa” dos fiscais, ainda existe, mas nem isso, e nem a multa de R$ 1.902 estipulada pela Prefeitura para quem for pego vendendo nas ruas, são suficientes para impedir o trabalho das centenas de camelôs.

“Já aconteceu do fiscal ver a gente, mas desistir de correr atrás. É difícil pra eles também”, diz Sônia Silva, 57, que trabalha vendendo sapatos e tênis usados nas redondezas do Shopping Uai.

A maior parte da fiscalização é direcionada ao quadrilátero formado pelas ruas Carijós, Curitiba, São Paulo e Tamóios, no entorno da Praça Sete. Nessa área, a Prefeitura permite apenas a presença de camelôs com deficiência física — com a ressalva de que eles não poderem trabalhar como prepostos, ou seja, trabalharem para outra pessoa.

Stefano Pagin, diretor de planejamento da Secretaria de Política Urbana, avalia com entusiasmo a experiência dos shoppings, mas reconhece que a oferta de vagas não impede, por si só, a atuação dos trabalhadores informais no hipercentro. “A gente não conseguiu acabar com o problema. Ele se manifesta no espaço urbano, mas não é de controle pleno nosso. Existem outras variáveis, como o desemprego e a situação econômica”, avalia Pagin.

 

Foto: Lucas Simões

Feiras livres e regulamentação

Em uma grande assembleia realizada no dia 4 de julho do ano passado, embaixo do Viaduto Santa Tereza, durante os protestos dos camelôs contra a retirada forçada dos camelôs do hipercentro, numa ação truculenta da Polícia Militar (PM), a categoria elaborou seis propostas encaminhadas à Prefeitura, mas sem resposta. A principal delas pede a criação de feiras e camelódromos em logradouros públicos movimentados, como praças, esplanadas e baixios de viadutos.

Segundo Stefano Pagin, as propostas ainda estão sendo estudadas pela Secretaria de Regulação Urbana. “É uma ideia que agrada a Prefeitura, mas é um passo posterior e que precisaria de outras políticas e estudos”, disse. “Mas a gente defende o que está dando certo. Para quem ia na rua Padre Pedro Pinto, em Venda Nova, e na avenida Visconde de Ibituruna, no Barreiro (locais de alta concentração de camelôs), realmente vê uma diferença bem grande, porque o logradouro público está desobstruído”, avalia Pagin.

Uma desobstrução “à base de uma política higienista”, na análise de Thais Ferreira Console, integrante da Intersindical e do Coletivo A Rua Vive, que presta assistência aos camelôs. Ela conta que apenas no Barreiro, pelo menos 180 camelôs ainda aguardam vagas nos shoppings. “Eles são trabalhadores e estão sem alternativa digna para viver. Foram expulsos das ruas antes de uma política traçada para eles. Uma galera está sem trabalhar e não consegue pagar o aluguel. É certo entre os camelôs que os shoppings não são alternativa. A alternativa seriam as feiras, espaços gestionados pelos próprios camelôs. Mas com a Prefeitura, o diálogo travou. Não querem enxergar outras propostas e possibilidades”, diz Thais.

 

Foto: Lucas Simões

Histórico

Para retirar os camelôs das ruas, o prefeito Alexandre Kalil (PHS) elaborou o Projeto de Lei 309/207, aprovado em segundo turno na Câmara Municipal, e que autoriza a realização de uma Operação Urbana Simplificada. Na prática, o PL permite que empreendimentos no centro disponibilizem espaços cobertos para locação de camelôs. Em contrapartida, os empresários parceiros terão direito a aumentar o potencial construtivo de seus empreendimentos, o que permitiria a expansão ou venda do direito.

O processo é similar ao colocado em prática na gestão do ex-prefeito Marcio Lacerda, resultando na construção do Shopping Oiapoque, inaugurado em agosto de 2003, também no centro da cidade. Uma das principais críticas a este processo foi a gradativa expulsão dos camelôs de suas lojas no shopping, diante a uma pesada investida de comerciantes com maior potencial financeiro e que lidam basicamente com eletrônicos.

 

Foto: Lucas Simões

Perfil dos camelôs

Para combater o estereótipo e o preconceito que paira sobre os camelôs, o Coletivo A Rua Vive publicou uma cartilha, ano passado, a partir de uma pesquisa realizada pela Prefeitura com 784 camelôs da capital mineira. A maior parte dos camelôs são adultos, pais ou mães de família, sendo que 70% têm filhos e 53% está na faixa etária entre 30 e 60 anos. No quesito renda e vulnerabilidade econômica, 88% ganham até dois salários mínimos, com o agravante de que 74% das pessoas afirmaram não possuir outra fonte de renda. Um fato importante neste contexto é que 75% dos entrevistados já teve a carteira assinada anteriormente e mais de 600 responderam que trabalham como ambulantes devido ao desemprego.