Onda de censura chega a BH

Deputado João Leite (PSDB) tenta impedir peça com transexual no papel de Jesus e o vereador Jair Di Gregório (PP) ameaça encerrar exposição de Pedro Moraleida


Foto: Daniel_Coury

A caça às bruxas na arte brasileira chegou a BH. Em tom de fundamentalismo religioso, o deputado estadual João Leite (PSDB) disse nesta quarta-feira (04/10) que entrará na Justiça contra a encenação da peça teatral “O Evangelho segundo Jesus, rainha do céu”, com estreia prevista para quinta-feira (05/10), no teatro da Funarte, e que já foi alvo de outras duas tentativas de censura no país. Já o vereador Jair Di Gregório (PP) quer encerrar a exposição “Faça Você Mesmo Sua Capela Sistina”, do falecido artista mineiro Pedro Moraleida, aberta ao público no Palácio das Artes.

Em discurso no plenário da Assembleia Legislativa na tarde de terça-feira (03/10), durante uma reunião ordinária, João Leite classificou eventos artísticos recentes, como a performance de Wagner Schwartz, no MAM de São Paulo, e a mostra Queermuseu, em Porto Alegre, como “aberrações”. Em suas palavras rasgadas e nada polidas, as manifestações são produto “de uma elite da esquerda brasileira que impõe às nossas crianças, aos nossos adolescentes, a imoralidade, aquilo que o Estatuto da Criança e do Adolescente chamou a atenção sobre o crime de expor crianças, expor adolescentes, a aberrações”.

Veja parte do discurso de João Leite na ALMG: https://goo.gl/ctDRF3

Renata Carvalho Foto Lígia Jardim

Em entrevista a O Beltrano, o parlamentar informou inicialmente que iria entrar com uma ação na Justiça e acionar o Ministério Público contra a apresentação da peça. “É o que nós pensamos no primeiro momento. Precisamos de uma providência e o MP é um bom caminho”, disse. Porém, o assessor do tucano, Ricardo Coutinho, informou, na sequência, que uma comissão técnica do gabinete do deputado se reunirá na tarde de hoje quarta-feira (4/10) para analisar as “possíveis medidas jurídicas cabíveis, para só depois tomar uma atitude”.

O espetáculo “O Evangelho segundo Jesus, rainha do céu” é baseado em texto da dramaturga escocesa e transexual Jo Cliford, levado aos palcos pela pela primeira vez em 2009. Assim como o texto original, a adaptação brasileira, em cartaz há um ano, fala da opressão e intolerância sofridas pelas minorias. A montagem, que já teve a versão original encenada em Belo Horizonte no Festival Internacional de Teatro (FIT), em 2016, incomodou agora os cristãos conservadores por ter uma mulher trans brasileira, a atriz Renata Carvalho, no papel de Jesus.

A atriz, que conversou com O Beltrano, explicou que o texto de Jo Cliford parte da trajetória pessoal da dramaturga: uma pessoa que frequentava a igreja, mas após passar pelo processo de transição de gênero, foi excluída dos espaços religiosos. “A Jo é uma autora de sucesso na Escócia, uma das dez mulheres mais influentes do país, com 80 peças montadas. Quando ela passa pela transição e percebe que é rejeitada e excluída só porque começou a usar saia no lugar de calças, ela reflete sobre quem seria hoje a população que sofre com uma exclusão, os incompreendidos, assim como Jesus também foi, segundo a Bíblia”, diz Renata.

Renata Carvalho foto: Humberto Araújo

Ela diz que as tentativas de censura são prova desse preconceito. “Para fazer a peça, a Jo pesquisou na Bíblia onde estava escrito que o corpo trans não era aceito. E adivinhe? Não existe isso na Bíblia. Então, essas manifestações de censura só reforçam o preconceito embutido nas pessoas. Por que a peça não fala mal de Jesus, pelo contrário, nós reforçamos valores de amor e respeito, tão em falta hoje. O problema é que para a sociedade Jesus pode ser tudo, menos travesti, né?”, completa Renata.

Censura

Em Judiaí (SP), o espetáculo chegou a ser proibido por decisão do juiz Luiz Antonio de Campos Júnior, mas a liminar foi suspensa pelo desembargador José Luiz Mônaco da Silva nesta terça-feira (03/10). A peça retornará à cidade em breve.

Em Porto Alegre, o juiz José Antônio Coitinho negou o pedido de cancelamento da peça no mês passado, feito pelo advogado gaúcho Pedro Lagomarcine, e justificou sua decisão dizendo que “devemos garantir a liberdade de expressão dos homens, das mulheres, da dramaturgia transgênero e da travesti atriz, pelo mais simples e verdadeiro motivo: somos todos iguais”.

Douglas Rezende, da produtora carioca Pé De Vento, responsável pela organização do festival Ocupação Transarte, que traz a peça à Belo Horizonte, informou que a produção está em contato com advogados para se precaver de qualquer situação de censura. “Já tivemos jurisprudências em dois estados a nosso favor. Então, estamos analisando e nos precavendo. Mas a programação de estreia em BH segue a mesma”, disse.

Foto Lígia Jardim

O espetáculo terá quatro apresentações na capital mineira, todas na Funarte, a partir das 20h e no domingo as 19h: a estreia acontece nesta quinta-feira (05/10) e a vai até domingo (08/10). Os ingressos custam R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia-entrada) e podem ser comprados no site do Sympla, neste link: https://goo.gl/2t4f73.

“O espetáculo prega aceitação, prega inclusão e fala do amor ao próximo e de opressões sobre minorias. De forma alguma ele ofende as religiões. Os religiosos podem vir assistir ao espetáculo, é uma reflexão para todos”, completou Douglas.

Obra de Pedro Moraleida Foto: Tulio Campos

Exposição

Engrossando o coro conservador do deputado João Leite (PSDB), o vereador Jair de Gregório (PP) protagonizou uma cena vexatória na manhã desta quarta-feira (04/10). Ele esteve no Palácio das Artes e gravou um vídeo acusando de “pornográfica” a exposição “Faça Você Mesmo Sua Capela Sistina”, de Pedro Moraleida, que tem classificação indicativa recomendável para maiores de 18 anos.

Assista ao vídeo em que Jari de Gregório ataca a exposição: https://goo.gl/vbZ2W4.

“O que eles estão expondo em Belo Horizonte é um crime, pessoas fazendo sexo com animais, imagens de pessoas fazendo sexo ao pé da cruz, ejaculando ao pé da cruz de Cristo. Estão fazendo de Belo Horizonte o que fizeram em Porto Alegre: uma exposição pornográfica”, disse o vereador.

O parlamentar prometeu acionar o Ministério Público ainda nesta tarde, exigindo o fechamento da mostra. “Eu filmei e vou vou denunciar hoje ao Ministério Público”, completou no vídeo publicado em sua página no Facebook. O vereador já havia se envolvido em outra polêmica, em fevereiro, ao cometer homofobia dentro da Câmara Municipal por se referir ao colega Gilson Reis (PCdoB) como “mariquinhas”.

Foto Tulio Campos

Luiz Bernardes, pai do artista visual Pedro Moraleida, diz que também pretende recorrer à Justiça, caso seja necessário, para manter a exposição, inciada em 1º de setembro e com previsão de se estender até 19 de novembro, na Grande Galeria Alberto da Veiga Guignard.

“Você pode não concordar com o que alguém diz, mas deve respeitar que esse alguém possa criticar a sociedade. Pedro faz uma crítica ao hedonismo, à sociedade de consumo, às relações de poder. E está sendo atacado por denunciar isso em sua arte, mesmo estando morto há 18 anos. Eu não vou permitir que a memória do meu filho seja violentada por essa onda fascista crescente apoiada em valores repletos de preconceitos. Se precisar, também vou à Justiça contra esses parlamentares”, desabafou Bernardes.

A mostra “Faça Você Mesmo Sua Capela Sistina” reúne 130 trabalhos de Pedro Moraleida, entre esculturas, textos, radiografias, desenhos, pinturas e vinhetas musicais. As obras abordam a dualidade entre sexo e religião e também apresentam duras críticas aos ícones da cultura pop.

Em nota, a Fundação Clóvis Salgado (FCS), que recebe a mostra com curadoria de seu próprio presidente, Augusto Nunes-Filho, não se manifestou diretamente sobre as ameaças do deputado João Leite e do vereador Jair Di Gregório. Mas citou o sucesso da exposição, que já recebeu seis mil visitantes, e também a importância e reconhecimento internacional do artista Pedro Moraleida. A chefe da assessoria de imprensa da FCS, Júnia Alvarenga, disse que a fundação ainda aguarda uma orientação conjunta da Secretaria de Estado de Cultura e do Governo de Minas Gerais, a ser definida nesta tarde, para tomar providências.

Leia abaixo a nota completa:

“Palácio das Artes faz exposições da vanguarda mineira

‘Faça você mesmo sua Capela Sistina’: exposição de Pedro Moraleida na Grande Galeria do Palácio das Artes integra a edição de 2017 – NÃO QUIS O QUE ESTAVA NO AR do programa ARTEMINAS. Mesmo com a limitação imposta na entrada da galeria pela placa indicativa desaconselhando sua visitação para menores de 18 anos, a exposição recebeu nesse primeiro mês quase seis mil visitantes, confirmando o grande interesse do público.

A FCS realiza essa exposição com mais de 160 obras entre pinturas, desenhos e objetos no ano em que a obra de Moraleida atinge sua maioridade e o artista completaria 40 anos. Nesses 18 anos, a obra de Pedro Moraleida adquiriu envergadura suficiente para ser exposta em países da América do Norte, Europa e Ásia. Além das exposições realizadas em Belo Horizonte – no então desativado Hospital São Tarcísio, hoje Centro de Arte Popular Cemig (2002), no Palácio das Artes (2002), no Museu da Pampulha (2003) e na Galeria Mama/Cadela (2015) – suas obras foram expostas em Lyon, Dubai, Berlim e no Canadá. A produção artística mineira de vanguarda é o tema desta terceira edição do ARTEMINAS. NÃO QUIS O QUE ESTAVA NO AR:. A frase do escritor Guimarães Rosa traduz o conceito que motivou a FCS a convidar os artistas, merecendo destaque o fato de, apesar da passagem do tempo, a obra de Pedro Moraleida continuar como uma das principais referências da arte de vanguarda mineira. Mais uma vez, a Fundação Clóvis Salgado reafirma sua vocação pública ao oferecer seus espaços expositivos para inquietações e reflexões artísticas e divulgar a produção das artes visuais mineiras, campo no qual tem alcançado destaque histórico.

Fundação Clóvis Salgado”