A película que elas habitam

Nesta edição da Mostra de Cinema, as mulheres mostraram que estão determinadas em não mais se contentar com papéis secundários no cinema nacional


Por Daniela Mendes

Jéssica Queiroz (de branco), Barbara Maria (de preto) e Ana Julia (de vermelho) – Foto Leo Lara -Universo Produção

 

A 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes teve como resposta ao seu chamado ao realismo, tema deste ano, uma provocação muito própria por parte das profissionais do setor que passaram pela pequena cidade mineira: o cinema é feito de homens cis, brancos e heterossexuais. Assim, sem negar a realidade que vivenciam, elas vieram com tudo para transformar o lugar estéril dos estereótipos de gênero, que não mais fazem sentido no cotidiano de suas produções.

Não por coincidência, na quinta-feira, 25, a Ancine apresentava no Rio de Janeiro, capital, os dados que confirmaram as discussões das telas e mesas da Mostra. De fato, segundo a pesquisa, homens brancos assinaram a direção de 75,4% dos 142 filmes nacionais lançados em 2016. Enquanto as mulheres dirigiram apenas 19,7% dos títulos.

 

Mariah Benaglia (Produtora)- Foto Beto StainoUniverso Produção

Os dados ainda são mais desiguais quando um olhar sobre identidades sociais, raça e sistemas relacionados de opressão, dominação ou discriminação é lançado. Só 2,1% de homens negros dirigiram filmes brasileiros. Enquanto nenhuma produção teve em sua direção ou roteiro uma mulher negra.

Porém, os lançamentos de novas diretoras apresentados durante a 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes demonstra muita disposição e talento para mudar a cena nacional. Foi o que ficou claro na fala da estreante Amanda Beça (O olho e o Espírito, 10 min.). Durante o evento, ela lembrou o episódio ocorrido em agosto de 2015 na sua cidade de origem, Recife, com a diretora Anna Muylaert (Que horas ela volta?). Naquele ano, os cineastas Lirio Ferreira e Claudio Assis boicotaram a fala de Muylaert  num debate. E como se quisessem ainda deixar bem claro que se tratava de preconceito, ainda chamaram a atriz Regina Casé de “gorda”.

Amanda conta que o episódio lamentável, além do escândalo nas redes, incentivou as profissionais do setor no Recife e a ela própria a se organizarem e produzirem. “Eu lembro que eu queria fazer minhas coisas, mas não sentia tanta legitimidade. Me sentia insegura e achava que era uma característica da minha personalidade. Mas, com a participação em grupos de rede social e coletivo Mulheres do Áudio Visual do Recife, eu vi que tinha toda uma superestrutura por trás da minha confiança. Ai eu disse… ah não! Vou por minhas ideias pra frente!”, relatou a jovem cineasta que já está no seu segundo festival.

“Cinema é para onde a gente pode ir”

Outras profissionais que se destacaram durante a Mostra de Cinema de Tiradentes foram as mulheres da produtora Carolina Filmes. Jéssica Queiroz trouxe o seu premiado Peripatético. O roteiro de Ananda Radhika venceu no prêmio do júri do Festival de Brasília. Trata-se de uma narrativa pop, com tons lúdicos, para falar de um assunto denso. Percebe-se que não se economizou ali o multitalento da roteirista. Toda a ilustração que dialoga nas imagens também é dela.

 

DEBATE MULHERES NEGRAS – FotoJackson Romanelli – Universo Produção

Inspirado na luta do movimento Mães de Maio, Peripatético traz os sonhos e a realidade dos jovens periféricos na época  do maior massacre da história de São Paulo. Em 2006, durante oito dias, pelo menos 564 pessoas foram mortas no estado. A maioria em situações que indicam a participação de policiais numa ação de vingança dos agentes de segurança do Estado contra os ataques da facção Primeiro Comando da Capital (PCC).

Apesar do sucesso, nem de tanto glamour vive Jéssica Queiroz, que já havia realizado Vida de Carolina (2014), inspirado na escritora Carolina de Jesus. A cineasta contou suas dificuldades para se fazer filmes. Todas as profissionais envolvidas na produtora não sobrevivem de cinema e tem que conciliar suas carreiras no audiovisual com outras profissões. Tanto que ela se despediu da Mostra logo depois da apresentação do seu filme porque tinha que trabalhar cedo no dia seguinte.

No entanto, a vontade de trazer de forma mais representativa a realidade dos jovens de periferia sem estereótipos fala mais alto. “Sempre gostei de cinema e nunca me vi na tela. É sempre um personagem ‘coitado’, ou é bandido… Então, como é que a gente pode falar diferente disso?”, pergunta, e fica claro que a resposta é o filme Peripatético. “Há uma forma de reverter a violência que o cinema sempre nos mostra e a objetificação dos nossos corpos… É meio que subverter as imagéticas do cinema nacional”, afirmou.

Engajada, a montadora de Peripatéticos, Ana Julia Travia, trouxe o filme Outras também. Durante a mesa redonda Encontro com os Filmes da Mostra Foco – Série 1, provocou os realizadores Yuri Lins e Leon Sampaio, um dia antes do julgamento do recurso do presidente Lula no Tribunal Regional Federal da Quarta Região. Foi um contundente sacode no niilismo de Peito Vazio e também a todos os jovens cineastas quando se referiu ao filme que trata das desilusões da juventude pós-golpe.

“Eu gosto muito dos filmes dos meninos, mas me espanta muito a forma com a qual a juventude fala de Golpe e impeachment da Dilma. E a melancolia de ser negro no Brasil? E a melancolia de ser mulher? Aí quando uma presidente mulher é impichada num processo mal elaborado pela esquerda, que foi todo esse tempo que vocês estiveram aí, vocês ficam melancólicos? Bem vindos! Bem vindos à melancolia do que é ser fodido nesse país. Eu acho muito pobre estudante de cinema vir e dizer… ah, o Lula. O Lula? Morreu. Morreu gente! o Lula tá morto e a gente precisa de outra coisa. Eu não posso vir aqui em Tiradentes e falar que Lula é solução. Eu tenho medo e horror disso. O golpe existe há muito tempo. Você tá mal? Parabéns. É a socialização do sofrimento. Já que vocês não socializam a felicidade a gente vai socializar o sofrimento. É muito ruim mesmo.”, desabafou.

Ana Julia também deixou muito claro seu mal estar por participar de um festival em que faltam muitos outros cineastas negros. “Muito obrigada por me dar esse espaço, mas vocês têm que abrir mais as portas”. E lembrou o filme Kbela, de Yasmim Nascimento, para falar de tantos outros ignorados por festivais. “As pessoas negras não podem se ver. Porque uma curadoria que não entende mais da metade da população que escolhe o que não poderia ser visto. Então eu tenho que falar disso aqui. Porque cinema é construção de imaginário. Cinema é pra onde a gente pode ir”, concluiu.

DEBATE MULHERES NEGRAS – FotoJackson Romanelli – Universo Produção

O cinema das mulheres negras

A professora de cinema do Centro Universitário Una, Tatiana Carvalho Costa, que acompanhou a Mostra, disse que existe uma dificuldade geral, simbólica e de existência que tem a ver com machismo e outras opressões sofridas. Para ela são verdadeiros obstáculos das mulheres do audiovisual, além das sobreposições que tem a ver com raça quando se faz o entrecruzamento. “Não é hierarquizar as opressões. É só dizer que existe um acúmulo de coisas quando se coloca raça e gênero juntos”, explica.

A professora também diz que o que se viu na Mostra de Cinema de Tiradentes é um reflexo da reunião de vozes femininas. “A gente se olha e fala: olha não estamos sozinhas”. A força coletiva e o apoio mútuo são as novidades desse tempo, segundo Tatiana. E isso é importante tanto para mulheres negras como para as brancas.

Mesmo assim a produção de longas por mulheres negras ainda é extremamente baixa. Só se tem notícia de um, de acordo com a professora. Ela citou o Café com Canela, de Glenda Nicácio, que ganhou prêmio de público no Festival de Brasília e abriu a Mostra de Cinema de Tiradentes.

Contudo, Tatiana está otimista quanto ao futuro. “Me parece que está acontecendo uma movimentação de pessoas que historicamente eram oprimidas e que começaram a ver possibilidades. E isso tem a ver com políticas públicas na educação”, analisa, e afirma que “Na universidade as pessoas negras começam a discutir sua identidade, seu pertencimento e necessidade de agir a partir disso”.

Para exemplificar, ela cita o caso de Bárbara Maria. A estreante foi Premiada no Festival Primeiro Plano de Juiz de Fora e surpreendeu o público da Mostra de Cinema de Tiradentes com o seu Pele de Monstro, 20min, um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). O documentário roteirizado, dirigido e produzido por ela relaciona racismo com thrillers de terror.

Num relato sobre sua vida acadêmica durante o Encontro de Cinema, que também fazia parte da programação da Mostra com o tema A Mulher Negra na Direção, ela disse que fez o filme para ser ouvida. E em tom bem humorado afirmou que estava feliz por, pela primeira vez, não ser o Chris. Ao que a plateia riu por entender a alusão à série de TV americana Todo Mundo Odeia o Chris, em que o ator negro Chris Rock, a partir de suas experiências, conta as desventuras de um garoto negro numa escola de brancos.

Ao encontro a esta visão, a gerente de cultura do Sesc, Eliane Parreiras, responsável pela programação artística da Mostra, o que inclui a mesa redonda no Cine Lounge A Mulher Negra na Direção, do qual fez parte Bárbara Maria e Ana Julia Travia, disse que a programação foi pensada com foco na diversidade para equilibrar as vozes e produções a fim de gerar reflexões na sociedade. “Muito recentemente a gente passa a ter mais mulheres ocupando espaços. E isso ajuda a gente a trabalhar o tema. De alguma maneira elas acabam pautando, mesmo que de forma diluída dentro dos festivais”, avalia e destaca que isso acaba por também influenciar na formação do público, pois quebra os estereótipos que as mulheres brancas e negras carregam.

Um bom começo

O que ficou claro durante a 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes é que uma nova geração de mulheres do cinema está surgindo. Num pequeno apanhado da participação delas, quando contabiliza-se o número de participantes na direção, nove longa-metragens, 26 curta-metragens e mais três filmes da Mostrinha foram realizados por mulheres. Isso num total de 100 filmes apresentados. Sem contar produção, roteiro e outras funções.

Camila Vieira – curadora RJ- Foto Beto Staino –
Universo Produção

A curadora de curtas da 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes, Camila Vieira, afirmou que como curadora sempre se preocupa em tentar perceber a participação de mulheres diretoras nestas produções. Ela participa do Coletivo Elviras, uma iniciativa feminina que busca fortalecer a crítica de cinema. Durante muito tempo fez também a curadoria do Cineclube Delas, no Rio de Janeiro, voltado para a exibição de produções de mulheres. Aponta desta forma, com propriedade, um problema de circulação dessas obras que deve ser superado.

Mas ela vê o que aconteceu este ano em Tiradentes como algo positivo. Na Mostra Foco, voltada para competição, dos dez curtas, quatro são dirigidos por mulheres. Destes quatro, um com co-direção masculina. “Isso já é muito singular, porque é quase metade”, disse animada pelo ineditismo. “E dentre estas diretoras da Mostra Foco uma é negra, mais raro ainda”. Fora da mostra competitiva, se destacaram também mais duas negras. “É pouco? É pouco se a gente pensar num conjunto inteiro. Mas acredito que nos próximos anos, mais diretoras negras possam participar e a gente também possa dar atenção para elas e ver o que elas estão produzindo. Assim como outras mulheres no geral”.

No conjunto geral, dos 72 curtas inscritos, 24 tiveram mulheres como diretoras e mais três com co-direção. Ainda não é suficiente e não é uma preocupação a priori da Mostra selecionar com critério de gênero e raça. Mas há na curadoria um esforço de olhar com mais atenção para os tipos de filmes selecionados. Camila afirma que a diversidade deve ser considerada e pensa que poderia ser positivo um espaço na inscrição que indicasse a raça. “Isso é uma forma de mapeamento. É uma coisa até que o Juliano Gomes (crítico de cinema) falou naquele debate lá, A Mulher Negra na Direção. Tem que começar a falar isso, mas de uma forma ampla. Não só em termos de Mostra de Cinema de Tiradentes. Outros festivais têm que começar também pensar estas estratégias”.

Camila Vieira aponta também outras mudanças importantes, como a escolha de um júri diversificado. Este ano foram três mulheres no júri da crítica e dois homens. Além disso também houve um aumento de convites de críticas para os debates. “Houve comentários nos corredores: tem mais mulheres, né? Isso é muito legal porque passa a ser perceptível”, disse admirada e aponta para um começo de mudança. Inclusive com a participação de duas curadoras, como ela e Lila Foster. Sem falar na coordenação geral da Mostra realizada por Raquel e Fernanda Hallak D’Angelo. “Possibilitar que mulheres entrem também na curadoria é algo muito raro de acontecer em Festivais. Eu acompanho muitos festivais. Eu trabalho há quinze anos neste meu exercício da crítica, inclusive em jornal impresso. A cobertura da Mostra de Cinema de Tiradentes eu faço desde a 11ª edição. Então é perceptível como há dez anos era a “macharada” que dominava. E agora as mulheres estão integrando e sendo integradas. E isso é muito bom”, afirma satisfeita.

Laís Ferreira – Foto Beto Staino – Universo Produção

A crítica de cinema Laís Ferreira vê uma mudança em todas as áreas no sentido em que as pessoas procuram ter voz. A partir disso, há uma necessidade, segundo ela, de se rever a cinefilia a partir de uma perspectiva feminina. Vê também uma força principalmente em relação à representação e o chamado para o cinema negro. Mas enxerga tudo como um processo ainda. Ela espera o momento em que mulheres não precisem mais ter que ficar afirmando o gênero. “Eu acho que a gente está vindo nesse chamado, de representatividade, com um outro desafio que é a existência de filmes e falas de mulheres que possam existir além das discussões de representação e reconhecimento. Já que esta é uma questão que os homens não precisam falar”.

De fato, uma boa definição de uma sociedade igualitária. Mas enquanto esse dia não chega, vai ter muitas profissionais do audiovisual fincando o significante mulher e mulher negra na realidade para que seu protagonismo não seja restringido só por causa do gênero ou raça.