Queermuseu: quando a estupidez silencia a arte

O Beltrano ouviu os artistas e o curador da exposição, que ao ser suspensa pelo Banco Santander, colocou fogo no debate sobre censura


Por Lucas Simões

 

O encerramento antecipado da exposição “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, pelo Santander Cultural, em Porto Alegre, é um dos mais graves episódios de censura na arte brasileira ocorridos desde a redemocratização. A exposição foi encerrada no domingo (10/09), depois de intensa pressão do Movimento Brasil Livre (MBL) e de setores religiosos nas redes sociais. Os críticos alegaram que algumas das obras fariam apologia à pedofilia e à zoofilia, além de atentar contra símbolos cristãos.

Mas, afinal, como nasceu a exposição e quais são as obras que despertaram tanto ódio entre conservadores?

A “Queermuseu” é a primeira exposição com temática queer montada no Brasil em uma grande galeira. A iniciativa partiu do próprio Santander Cultural de Porto Alegre, segundo o curador do mostra, Gaudêncio Fidelis. Ele se diz perplexo com o encerramento precoce da exposição — que deveria permanecer aberta até 8 de outubro. Segundo Fidelis, há pelo menos um ano as conversas foram iniciadas com o Santander Cultural para reunir um acervo queer brasileiro inédito em um mesmo espaço.

No caso, 270 obras de 85 artistas, incluindo nomes do primeiro time da arte nacional como Lygia Clark, Cândido Portinari, Alfredo Volpi, Adriana Varejão e Leonilson. A ideia era reunir artistas visuais que trabalharam de meados do século XX até hoje, todos de alguma forma identificados com a expressão queer.

“Estávamos realizando um movimento necessário para entender a sociedade contemporânea, indo de Adriana Varejão à Bia Leite. O mesmo que museus de Londres ou Washington já fizeram. E foi uma iniciativa do Santander, o próprio banco propôs e bancou a exposição, convidou artistas. Ou seja, não foi um projeto que o Santander apoiou, mas, sim, que idealizou desde o início. É muito estranho e perigoso aceitar o recuo do Santander Cultural diante de tanto conservadorismo, só pelo medo”, diz Gaudêncio. O Santander Cultural confirmou que captou R$ 800 mil para realizar a exposição, por meio da Lei Rouanet.

Mas, se o banco cedeu à pressão conservadora, agora terá que lidar com a reação progressista. Ativistas do Nuances – Grupo Pela Livre Expressão Sexual, realizam nesta terça-feira (12/09) ato pela liberdade de expressão e contra a LGBTTfobia, na porta do Santander Cultural, na avenida Sete de Setembro, no Centro Histórico de Porto Alegre, a partir das 15h30. “Nós queremos e vamos reabrir a exposição. É um protesto para o Santander entender que errou e que precisa admitir isso publicamente. Não pode simplesmente censurar uma exposição porque conservadores extremados pediram”, diz Célio Golin, coordenador geral do Nuances.

Entre as obras mais polêmicas está o trabalho da artista cearense Bia Leite, autora da série de telas “Travesti da Lambada”. Ela se inspirou no site “Criança Viada” (www.criancaviada.tumblr.com), que reúne milhares de imagens enviadas por internautas de quando eram crianças e já apresentavam “trejeitos não heteronormativos”.

“Travesti da Lambada”, de Bia Leite: pinturas de crianças com trejeitos não-heteronormativos

“As pinturas foram feitas a partir da apropriação das fotografias e textos do site ‘criancaviada.tumblr.com’. As pessoas enviam suas próprias fotografias antigas, com traços/trejeitos não heteronormativos. A intenção é celebrar esses traços, que durante toda a infância foram motivo de xingamentos e violência. Nas telas expostas, todas as crianças sorriem e o texto enaltece e empodera essas crianças desviantes, finalmente, chamando-as de deusas ou nomes de super heroínas”, justifica Bia.

O próprio criador do site “Criança Viada”, Iran Giusti, que inspirou os quadros de Bia Leite, explicou o teor das fotos, enviadas desde 2012 pelos próprios fotografados. “As frases que ilustram as obras da Bia são minhas e me doeu pra caralho ver que algo que eu escrevi, que foi tão lindamente entendido por anos, acabar sendo colocado como apologia à pedofilia por gente inconsequente e desinformada”, disse em publicação no Facebook.

A outra principal polêmica da exposição mexeu com os ânimos cristãos. A obra do pintor gaúcho Fernando Baril, “Cruzando Jesus Cristo com Deusa Shiva”, foi pintada em 1996, mas só agora despertou a ira. Na imagem, Jesus aparece com dezenas de braços extras, como Shiva, mas acrescidos de elementos da cultura pop e do consumismo desenfreado. Para cristãos, a obra, mesmo pintada há quase duas décadas, se enquadra no artigo 208 do Código Penal, que atesta crime “vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”.

“Cruzando Jesus com Deusa Shiva”, de Fernando Baril, foi uma das obras mais atacadas na internet

Para Fernando Baril, porém, o caso não passa de “conservadorismo enrustido”. “É uma crítica à Igreja, de como a instituição nos empurra as coisas, principalmente o consumo do Ocidente. E isso afeta o mundo inteiro. Eu realmente não sei onde as coisas vão parar. Talvez nem na ditadura tivemos uma patrulha tão incisiva”, desabafa Fernando.

Mesmo reconhecida internacionalmente, a carioca Adriana Varejão também foi alvo das críticas mais pesadas nas redes sociais. Seu quadro “Cena do Interior II”, pintado a óleo em 1994, foi acusado de profanação e apologia à zoofilia. A pintura mostra cenas de sexo diversas, entre duas mulheres japonesas e dois homens brancos e um negro, por exemplo. Mas, na internet, apenas a parte da obra em que duas figuras masculinas se relacionam com uma cabra foi recortada e compartilhada, gerando diversos comentários de ódio.

“Cenas do Interior II”, de Adriana Varejão, foi acusada de fazer apologia à zoofilia.

O artista gaúcho Sandro Ka, militante LGBT, também foi alvo de ataques de ódio ao discutir as relações de poder e hierarquia na sociedade. Uma de suas obras presente na exposição, “O Peso das Coisas”, realizada em 2012, exibe um busto de Jesus Cristo de frente para um bibelô de um veado de cabeça baixa, retratando a apropriação cristã sobre escolhas e exercícios individuais.

“Me interesso por apontar e sugerir a dominação de corpos, mentes e culturas e a sobreposição de valores sociais. O que aconteceu nesses protestos foi uma forma de alguns setores da sociedade se promoverem em cima de uma causa muito vulnerável. A exposição ‘Queermuseu’ dava visibilidade para uma série de trabalhos que falavam sobre diferenças, muito marcada pela diversidade de gênero e sexual. Quando se dá visibilidade para isso, e depois se corta a possibilidade de diálogo, é um retrocesso gigantesco”, diz Sandro.

“O Peso das Coisas”, de Sandro Ka, revela as relações de poder exercidas pela religião sobre corpos e mentes

“Por enquanto, seria impossível realizar a exposição em outro lugar, como algumas pessoas sugeriram. Por que o projeto é do Santander, o catálogo físico, a organização, curadoria, tudo. Então, é necessário que o banco se retrate”, completa Sandro.

Até o momento, o Santander Cultural se limitou a informar o cancelamento precoce da exposição por meio de uma nota publicada no Facebook.

Leia abaixo a nota oficial do banco:

“Nos últimos dias, recebemos diversas manifestações críticas sobre a exposição Queermuseu – Cartografias da diferença na Arte Brasileira. Pedimos sinceras desculpas a todos os que se sentiram ofendidos por alguma obra que fazia parte da mostra.

O objetivo do Santander Cultural é incentivar as artes e promover o debate sobre as grandes questões do mundo contemporâneo, e não gerar qualquer tipo de desrespeito e discórdia. Nosso papel, como um espaço cultural, é dar luz ao trabalho de curadores e artistas brasileiros para gerar reflexão. Sempre fazemos isso sem interferir no conteúdo para preservar a independência dos autores, e essa tem sido a maneira mais eficaz de levar ao público um trabalho inovador e de qualidade.

Desta vez, no entanto, ouvimos as manifestações e entendemos que algumas das obras da exposição Queermuseu desrespeitavam símbolos, crenças e pessoas, o que não está em linha com a nossa visão de mundo. Quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perde seu propósito maior, que é elevar a condição humana.

O Santander Cultural não chancela um tipo de arte, mas sim a arte na sua pluralidade, alicerçada no profundo respeito que temos por cada indivíduo. Por essa razão, decidimos encerrar a mostra neste domingo, 10/09. Garantimos, no entanto, que seguimos comprometidos com a promoção do debate sobre diversidade e outros grandes temas contemporâneos”.

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