As vítimas não reconhecidas da Samarco

Atingidos pelo maior crime socioambiental da história lutam por inclusão no cadastro


Por Lucas Simões

 

Isis Medeiros

 

 

Quase dois anos após o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, muitos atingidos sequer conseguiram ser reconhecidos como vítimas do maior crime socioambiental da história do Brasil. Nos oito distritos de Mariana, epicentro do desastre que afetou toda a Bacia do Rio Doce, pelo menos 40 pessoas que assistiram a lama bater à porta de casa lutam para ser incluídas em programas de assistência da Fundação Renova, criada pela Samarco/Vale/BHP Billiton para ressarcir as vítimas. E cerca de 700 famílias estão fora do cadastro da fundação que promete indenizações.

A avalanche de lama que desabou da mineradora Samarco matou 19 pessoas e afetou a vida de pelo menos 450 mil moradores em 30 cidades de Minas Gerais e do Espírito Santo, deixando um rastro de 47 mil hectares destruídos e dezenas de rios afluentes poluídos.

Com a proximidade do dia 5 de novembro, marco de dois anos da tragédia, o Movimento dos Atingidos das Barragens (MAB) de Mariana e o “Jornal A Sirene”, escrito por moradores atingidos da cidade, passaram a denunciar a morosidade das ações de reparação às vítimas.

O principal ponto refere-se ao cadastramento das famílias que deverão receber a indenização pelos danos. É este cadastro que irá catalogar todas as perdas materiais e imateriais das famílias e dos moradores individualmente. Só depois, as indenizações serão calculadas, caso a caso.

Em Mariana, pelo menos 700 famílias ainda aguardam o cadastro, segundo a assessoria técnica da Cáritas Brasil, entidade ligada à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e que presta apoio aos atingidos em Mariana. Já a Fundação Renova diz que são 514 famílias, ou 1.611 pessoas ainda passíveis de serem cadastradas, de acordo com levantamento prévio da Defesa Civil de casas interditadas após o rompimento da barragem de Fundão.

Depois de cinco meses de elaboração, o cadastramento de moradores de Mariana foi suspenso em novembro de 2016, por decisão judicial. Os atingidos da cidade que movem Ação Coletiva contra a Samarco/Vale/BHP questionaram os métodos do formulário aplicado. O documento contém 578 páginas e foi elaborado pela empresa terceirizada Synergia Consultoria Ambiental, contratada pela Fundação Renova.

Entre as críticas ao formulário, está a falta de critérios para definição de bens imateriais, a confusão entre os conceitos de reparação e reconstrução, além da exclusão dos próprios atingidos na elaboração das questões a serem respondidas por eles. “Além de ser burocrático, o formulário é uma armadilha para os atingidos. Por exemplo, a Fundação Renova se limita a ‘catalogar’ bens imateriais como situações de adoecimento, perdas de vida e animais domésticos. E existem culturas perdidas, tradições, danos psicológicos dificílimos de se mensurar. Se não estiver no formulário, isto não será indenizado. Por isso, nossa proposta é que os atingidos participem da formulação do questionário”, afirmou a assessora técnica da Cáritas, Ana Paula.

Até maio deste ano, a Fundação Renova realizou oito reuniões com os atingidos de Mariana para rever padrões do questionário, mas até hoje não foi apresentada uma versão definitiva do documento. Questionada, a assessoria de imprensa da Fundação Renova informou, por meio de nota, que o cadastramento está sendo revisto e “até setembro, 75% das solicitações (de moradores) foram acatadas para a modificação do cadastro” e que “discussões finais estão em curso para reduzir a incompatibilidade verificada em 25% das questões e se chegar ao consenso”.

Leandro Taques

Os números, entretanto, são questionados pela assessoria técnica da Cáritas. “A Fundação Renova fala de uma porcentagem de consenso nesse processo de construção, mas isso é uma falácia. Por que é preciso discutir o conceito de atingidos. Durante esses cinco meses de debate na elaboração do cadastro, a Fundação Renova propôs aplicá-lo para quem eles e nós, da Cáritas, reconhecemos como atingidos. E nós falamos que não podemos fazer isso. O conceito de atingido precisa ser discutido com os próprios moradores”, diz Ana Paula.

A agricultora Maria do Carmo D’ângela perdeu seis meses até ser reconhecida como atingida pela Fundação Renova. Hoje, além de pleitear um novo processo de cadastramento, ela luta pelo reconhecimento de pelo menos outras 40 famílias da zona rural, ainda não amparadas como vítimas.

“Eu tive que mostrar fotos das minhas cabras, galinhas, o leite e o queijo que eu produzia no meu quintal. E, ainda assim, duvidaram. Para a empresa, atingido é aquele que a lama levou a casa. Aquele que a lama parou na porta, não. Isso é um fato e aconteceu comigo. Eu tive que correr atrás para ser incluída, porque minha casa estava de pé, mas toda cercada de lama. E, para a Samarco, estava tudo bem”, diz Maria do Carmo.

A Fundação Renova reconhece a necessidade de reconstrução de 27 casas afetadas pela lama na zona rural de Mariana. Em resposta a O Beltrano, a assessoria de imprensa da Fundação Renova informou que “está em diálogo com os proprietários de moradias rurais que receberam notificação preventiva da defesa civil em razão do rompimento da barragem de Fundão para ampliar o conhecimento da situação e avaliar a inclusão nos programas”.

A assessora da Fundação Ford, Letícia Aleixo, que também presta assessoria aos atingidos de Mariana, alega que o número de casas afetadas e não reconhecidas pelas empresas é de, pelo menos, 40, segundo levantamento da assessoria técnica dos atingidos. “Temos vários casos de famílias que continuam vivendo em suas antigas casas, que já foram condenadas pela Defesa Civil em 2015. Essas pessoas não poderiam estar lá. Mas, a Fundação Renova não as reconhece como vítimas. Muita gente tem nos procurado pedindo ajuda, porque não se sentem seguros em regiões de risco”, diz Letícia.

Caio Santos

Novos distritos

Diante do impasse, os atingidos temem que as construções dos novos distritos em Mariana, como Novo Bento Rodrigues e Nova Paracatu, possam não sair do papel no prazo determinado. Segundo o cronograma da Fundação Renova, as obras serão concluídas até o fim do primeiro semestre de 2019.

A Nova Bento Rodrigues, será construída numa área de 89 hectares conhecida como Lavoura, pertencente à Arcelor Mittal. A região fica a oito quilômetros de distância de Mariana e a nove quilômetros do antigo distrito, que tinha mais de 300 anos de história e foi destruído pela mineradora, instalada na região há menos de 40 anos. Segundo Mauro Marques da Silva, da Comissão dos Atingidos de Bento Rodrigues, o projeto da Nova Bento Rodrigues está atrasado.

“Nós sabemos que o licenciamento ambiental ainda não está pronto. E isso é o básico para qualquer obra. Eu só tive meus direitos reconhecidos quase um ano depois do rompimento da barragem, em uma audiência judicial no dia 10 de outubro de 2016, e tive que lutar muito para ser entendido. Até então, eu era um intruso, apesar de ter nascido em Bento, ter sido criado lá, ter minhas raízes e meus antepassados e conhecer toda a história da cidade”, diz Mauro.

Atualmente, cerca de 300 famílias da zona rural de Mariana vivem em casa alugadas na área urbana da cidade, enquanto aguardam as residências definitivas. Além disso, 1.030 pessoas recebem um cartão de auxílio financeiro da Fundação Renova no valor de um salário mínimo (R$ 937), com acréscimo de 20% por dependente e uma cesta básica.

No próximo dia 5 de outubro será realizada uma audiência judicial em Mariana, com participação do Movimento dos Atingidos Por Barragens (MAB), Ministério Público e representantes da Samarco/Vale/BHP. Na ocasião, será discutido um prazo legal para a finalização do cadastro de atingidos em Mariana, além de expostas as denúncias de moradores e as ações de reparação da empresa.