Cidade viva

Um olhar bonito, vibrante e provocativo de Lena Cunha sobre a cultura de Belo Horizonte


Por Lena Cunha1

Final do Duelo de Mcs realizado no último domingo dia 16/12 Foto: Fael Diogo

Uma visão panorâmica da realidade cultural do país nos provoca uma sensação de angústia, diante da falta de perspectivas futuras. Realmente vivemos tempos difíceis e, com isso, não foi nada tranquilo refletir sobre Belo Horizonte e sua vida cultural nos dias de hoje, atendendo à provocação de O Beltrano. Foi preciso deixar fluir uma avalanche de pensamentos e sentimentos críticos, mas também de afetos sobre a cidade que, na sua essência, é o lugar do conflito, da convivência de várias identidades que a permeiam e a constituem como espaço urbano múltiplo, cultural e político. Assim, essa escrita vem de um olhar que busca reconhecer a estrita relação entre arte, cultura, gestão, política e cidade.

A vida urbana é tudo isso: um percurso complexo de vários olhares que permitem identificar diferentes formas de ver, de compreender e de reconhecer as apropriações dos usos da cidade, como espaço de viver, de conviver, de manifestar, de representar, de fazer política, de fazer e de usufruir da cultura e da arte. É um território em que convivem pessoas e que, portanto, está vivo e sempre em busca de novos sentidos, em constante processo de (re) construção.

Há poucos meses, Belo Horizonte foi identificada, na pesquisa Cultura nas Capitais lançada pela JLeiva Cultura & Esporte, como uma das cidades brasileiras com “maiores níveis de acesso à cultura”. Diante dessa constatação, inevitavelmente nos perguntamos: que cidade é essa? O que a leva a ter um resultado favorável com relação ao hábito cultural de seus moradores?

Percebo que há em Belo Horizonte uma potencialidade artística e estética que pode ser apreendida por vários sentidos. Vivenciar a cidade culturalmente significa andar pelas suas ruas e apreciar uma arquitetura que ainda traz resquícios de sua origem ao final do século XIX, mas que se vê entrecortada por várias camadas da modernidade, que sobrepõem sobre a memória e o patrimônio.

A Praça da Liberdade, um dos espaços mais emblemáticos – e polêmicos – da cidade, abriga prédios suntuosos que fizeram parte da nossa história política e que hoje compõem um de seus circuitos de cultura. Não há dúvida da atual importância do Circuito na programação cultural da cidade, mas a Praça e seus equipamentos culturais precisam corresponder aos papéis que lhes foram delegados, buscando maior apropriação pelos cidadãos. Não há como negar o político e o cultural ali presentes, assim, nós reconheceremos como espaço potente da cidade.

Do alto da Praça é possível tomar várias direções. Podemos descer pela Bias Fortes e chegar até o Mercado Central, para nos perder nos corredores coloridos e sentir os cheiros dos temperos, das pimentas e do queijo curado. Porém, se tomarmos a Cristóvão Colombo, alcançaremos a região da Savassi, com suas livrarias de rua, seus locais de encontro, seus cafés e sua literatura, que teimam em resistir de maneira quase artesanal, na contramão das pressões do mercado. Podemos também caminhar para o lado oposto e descer a João Pinheiro em direção ao centro, para ver de perto as imagens gigantescas grafitadas nas fachadas dos prédios, selecionadas por uma curadoria artística, mas também outros tantos trabalhados impressos de forma espontânea pelos artistas da rua. Se partimos pela Avenida Brasil para a região leste, vivenciamos no Horto uma atmosfera que se transformou pelo teatro e pela música e, na emblemática Santa Tereza, uma vida noturna embebida pela música e pela gastronomia. Estes são apenas alguns exemplos, pinçados do impressionante mosaico cultural da cidade. O giro pode ser de 360 graus e o percurso, muito mais profundo!

Nessas andanças, BH se apresenta como um território de inúmeras cores, que viu crescer, com seus blocos de carnaval, um movimento político de luta pelo direito à cidade e à ocupação dos espaços urbanos com manifestações culturais, fazendo da cultura uma bandeira para conquistas sociais. São vários blocos que estendem suas atividades pelo ano inteiro, reconhecendo nas práticas cotidianas outras formas de apropriação da cidade. O poder dos coletivos se faz presente e vem como uma alternativa potente de sobrevivência para o setor cultural, no momento em que se reafirma sua capacidade de construção de parcerias colaborativas.

Nesse caleidoscópio cultural de BH, não podemos deixar de considerar uma discussão de política pública para a arte e para a cultura. Levando em conta os vários retrocessos inegáveis e também alguns avanços conquistados, precisamos falar de uma política na perspectiva da continuidade daquilo de positivo que vem construindo uma linha norteadora para a cidade. Nesse sentido, precisa ser ressaltada a importância estratégica da volta da Secretaria Municipal de Cultura, em 2017, ainda que seja necessário empreender uma luta permanente para posicioná-la na estrutura municipal como parte fundamental de uma visão política de estado.

Na perspectiva das políticas públicas municipais, faço um recorte muito pessoal para destacar algumas ações que acredito terem potencial transformador e estruturante para o setor cultural da cidade. A primeira iniciativa é o programa contínuo de formação artística Arena da Cultura, criado na década de 1990 e transformou-se na Escola Livre de Arte (ELA, 2014). Nessa trajetória de duas décadas, consolidou-se um importante ciclo de formação de gerações nas periferias do município. Isso, de fato, modifica uma cidade!

Também a criação de dezessete centros culturais localizados nas nove Regionais teve a potencialidade transformadora da descentralização e da ocupação da cidade. No entanto, para cumprir esse papel com sua potência máxima, é preciso que haja avanços na apropriação pela própria comunidade. É necessário investir em atividades permanentes e em horários estendidos para o período noturno, quando os moradores retornam do trabalho e podem usufruir de suas atividades. Que sejam espaços de encontros e do fazer artístico, mas também lugares de acolhimento.

O mesmo se diz para os equipamentos culturais públicos já mais antigos da cidade, como os teatros, os museus, as bibliotecas e o arquivo, cuja atuação precisa ser revista e ampliada, de forma a potencializar suas ações. Os eventos realizados pela Fundação Municipal de Cultura, alguns desde a década de 1990, permanecem em atividade, porém oscilando de edição para edição no que diz respeito à sua força e seu impacto.

A legislação de incentivo fiscal que busca se ajustar a uma realidade que não consegue atender de forma satisfatória diante de uma demanda cada vez mais crescente por recursos incentivados. Depois de muito tempo sabemos da importância da legislação de incentivo fiscal à cultura para a circulação de recursos e efetivação de iniciativas culturais, mas também temos clareza que ela é apenas um dos instrumentos de financiamento e sem uma política pública estruturante, torna-se frágil.

No entanto, somos conscientes de que nada disso se potencializa se não houver uma visão da cultura integrada e entendida como parte entrelaçada a todas as demais áreas que compõem a estrutura política da Prefeitura de Belo Horizonte. A disponibilização dos recursos orçamentários para a cultura precisa ser compreendida como investimento na cidade, podendo ser de responsabilidade também de outras áreas, seja a educação, o desenvolvimento social, o planejamento, o transporte público, o meio ambiente ou o turismo.

Diante de todos esses potenciais e dos enormes desafios que se colocam para a gestão pública, volto a me perguntar: afinal, que BH é essa que se apresenta, dentre as capitais, como tendo “os maiores níveis de acesso à cultura”? Como chegamos até aqui e em que medida podemos avançar? Não há resposta simples e imediata, mas a convicção de que temos que pensar e construir uma cidade plural, politizada e que garanta acesso a todos os nossos direitos, nenhum a menos, e para todas as pessoas.

Da minha parte, tento cumprir com meus deveres e responsabilidades do coletivo e aqui faço uma escancarada declaração de amor à cidade, porque é daqui que respiro e vivo a cultura, traduzida pela arte, pela educação e pela política! É nesta cidade que tento me nutrir com boas doses de coragem e de ousadia, persistindo e resistindo nos fazeres cotidianos.

1 Gestora cultural, pesquisadora, mestre em educação e especialista em planejamento e gestão cultural. Diretora da Inspire Gestão Cultural.