Clementina de Jesus é minha mãe

Em mais um dia de filmes, conversas e surpresas ficamos com o aprendizado e a necessidade de repensarmos, tudo. Entrevista de Raquel Hallak mostra o tamanho do desafio da cultura no Brasil


Por Rafael Mendonça

Publicado em 21/01/2019

Frame do filme Clementina/ Divulgação

Quando escrevo que Tiradentes e a Mostra de Cinema vão oferecendo seus presentes para quem sabe procurar vocês acham que tô mentindo ou exagerando. Mas não. Você acha mesmo. No primeiro dia a Grace e sua mãe, no segundo Ju, Ana e o centenário. Ontem foi um dia de aula. De uma imersão no mundo das mulheres. Mulheres negras. Mulheres fortes. Mulheres que sabem muito bem o que e como querem mudar o mundo e Clementina de Jesus. Onde mais uma vez aprendi sobre respeito, meu lugar no mundo e o quanto temos que melhorar. Em tudo.

Tinha acabado de subir a de ontem quando chega o convite. A Aline me avisando que a Zora estava fazendo um almoço e que era pra gente subir. Uma casa com umas 10 mulheres, corpos políticos, atuantes, cheias de projetos e ideias. Foi a Soraia Martins que muito corretamente me alertou do privilégio de estar ali assistindo, aprendendo e principalmente ouvindo.

Nós homens, héteros, brancos temos muito o que aprender, temos muito o que nos questionar e ver o que vi ontem me trouxe a certeza de que estamos muito longe. Eu fico imaginando a cara de alguns caras que conheço lendo essa frase.

Ouvir os projetos, ideias, vontades e desejos dessas mulheres mostra o quanto nós estamos atrás. Graças as deusas os anos 10 são e serão delas. E outra, ainda somos muito racistas. Mas MUITO!

Raquel Hallak – Foto Leo Lara/Universo Produção

Olhos atentos

Aí teve a entrevista com a Raquel Hallak, diretora da Universo Produção e coordenadora da Mostra. Ele pontua muito bem o momento e lança algumas reflexões muito importantes. Leia abaixo.

O Beltrano : A Mostra passa em sua 22ª edição por um momento de muitas incertezas. Como você vê isso?

Raquel Hallak: Eu sou muito positiva, a mostra é um trabalho coletivo que pode representar e a gente mostrar a força que o cinema tem. Eu não me iludo, estamos passando por mudanças e estamos em um cenário incerto e complexo. A industria do entretenimento é a que mais cresce no mundo e a gente tem que mostrar esses números. A gente tem que sair um pouco de falar só da arte, do “meu” filme e pensar que segmento eu represento. Eu represento um segmento desta indústria.

A cultura transforma onde ela passa, a cidade de Tiradentes não é mais a mesma. O audiovisual não é mais o mesmo. Agora temos que pensar a nova configuração de mercado. Eu falo que depende da gente pois estamos dentro de uma esfera de mercado. Nós temos que pensar uma nova configuração de mercado.

OB: Como explicar pra essas pessoas que veem a cultura como inimiga que é só estudar um pouco que vai ver que não é?

RH: A cultura assusta né! A primeira coisa que penso é que o cinema brasileiro mostra o que nós somos, qual é o nosso lugar e onde estamos. O cinema molda nosso olhar. Se a gente só consome cinema de shopping, norte americano nós não vamos conhecer o Brasil e aqui na Mostra a gente exibe filmes que falam que Brasil que é esse. O que o Brasil está nos dizendo. O cinema contemporâneo é o reflexo das questões sociais e politicas atuais.

OB: Mas como a gente pode dar um rumo melhor nisso?

RH: O que o cinema representa hoje para além do que ele custa. Nós aqui estamos falando de cinema. Mas também de liberdade de expressão, de novas tecnologias, de novas estéticas. Isso já é válido por si só. Não existe lugar no mundo que o Estado não participe da Cultura. O papel do Estado não é fazer evento. É fazer política pública a favor da sociedade. A gente tem que mostrar que a gente faz parte disso tudo. Eu tenho uma empresa, emprego pessoas, pago impostos. Nada é de graça. A gente tem que mostrar isso. Acabou de sair uma pesquisa com números que mostram. Tem que deixar claro que para cada real da Lei Ruanet, voltam R$1,59 para o Estado. As pessoas não sabem disso. Aqui é tudo de graça, se eu não fecho as contas saio no vermelho.

Foto Leo Lara/Universo Produção

“Ao ouvir Clementina, Jesus só queria ser preto também”

O filme de Ana Rieper foi presenteado com uma linda noite na praça. Um lua e um céu digno de celebrar Clementina de Jesus. Uma das, se não a maior de todas as cantoras de samba, teve seu documentário exibido para centenas de pessoas.

Um documentário clássico, com maravilhosas imagens de arquivo e depoimentos de familiares com lembranças deliciosas de se ouvir, e ver também.

“A Clementina de Jesus é uma pessoa, que transitou muito no Rio de Janeiro. Sua experiência em terreiros de santo, igrejas, escolas de samba, rodas de jongo, rodas de partido alto, foi fundamental na sua formação. E ela, diga-se de passagem, também foi figura importante em muitas dessas manifestações de celebração da vida. Clementina e a cultura negra carioca e fluminense se misturam, se criam uma com a outra. E também nesse aspecto os lugares ganham muita força no filme. São imagens de espaços que contam a história de Clementina que percorrem toda a narrativa” afirma Ana Rieper.

Ciente do desafio que é trabalhar em cima de um ícone Ana afirma: “Nunca quisemos contar uma história total da Clementina de Jesus, mesmo porque isso não é possível. O filme se aprofunda na sua ligação com as celebrações da diáspora africana no Rio de Janeiro. Daí vem sua força”.

Divulgação

Uma pessoa que sabe o que está fazendo e consciente do que vivemos. Conversamos um pouco mais sobre as coisas do mundo.

“Sempre me moveu falar sobre o Brasil. É um tema bastante amplo mas no final das contas é uma busca muito íntima, de olhar para o que contingencia nossa vida cotidiana, nossas dores, nossos amores, relações de família, a existência material. Questões que não se esgotam, que na realidade são apenas tocadas por cada filme que faço. Mas é algo que dá muito sentido para cada trabalho. Quero falar sobre o Brasil para me entender um pouco mais, pra me ver nesse país tão complexo e cheio de vida. E cheio de lados B”, afirma.

Sobre os dias atuais Ana é ainda mais incisiva: “A produção artística de uma país é um ativo do povo, que produz história, produz sentido social e move a economia de forma consistente. Políticas pública para a cultura são medidas de promoção do desenvolvimento do Brasil em muitas frentes. Não parece ser de interesse do atual governo o desenvolvimento do país e de sua população. A mudança de orientação política tem um forte impacto na produção artística, e no cinema em particular. Entretanto não vão nos calar. A maior parte dos recursos que hoje movem o audiovisual são provenientes da própria atividade e precisamos lutar para que permaneça assim, o que inclusive já está acontecendo”.