Desigualdade, encruzilhada para o Brasil e seu futebol

Futebol e a realidade brasileira se misturam quando o assunto é distribuição de dinheiro. Um retrato da desigual divisão da grana entre os clubes


Texto e fotos por André Teixeira

Publicado em 10/01/2019

Foto: André Teixeira

Entre os que analisam o futebol além do que acontece entre as quatro linhas, há uma crença generalizada de que ele é um reflexo das caraterísticas de cada povo e suas respectivas condições econômicas e sociais. O futebol praticado no Brasil, por exemplo, teria em seu DNA a ginga, a malemolência, o improviso de sua população, enquanto o da Alemanha refletiria o pragmatismo e eficiência germânicos. O endeusado “Carrossel” de Cruyf, Neeskens, Rensenbrink e companhia, em que os jogadores trocavam o tempo todo de posição, seria mais uma demonstração do “espírito livre” holandês, assim como o burocrático futebol da Inglaterra espelharia o jeito de ser dos sisudos britânicos.

Há, evidentemente, brechas nessa teoria. A quase obsessiva preocupação da seleção italiana com o sistema defensivo dificilmente combinaria com o estilo de vida relaxado e festivo normalmente associado aos moradores da Bota. No entanto, é inegável a influência do contexto político, econômico e social no esporte mais popular do planeta – e vice-versa, claro. No caso específico do Brasil, uma característica da sociedade vem se mostrando cada vez mais marcante no futebol: a desigualdade entre ricos e pobres, aprofundada pela crescente concentração de riqueza. Um fenômeno que ameaça a própria estrutura do esporte como espetáculo gerador de riqueza e alavanca econômica.

Foto: André Teixeira

Vamos aos números. Segundo dados colhidos pela Oxfam Brasil, divulgados em relatório publicado no final de 2018 – disponíveis em https://www.oxfam.org.br/pais-estagnado -, o rendimento mensal do segmento composto por 1% da população brasileira é 36,3 vezes maior do que o dos 50% mais pobres. Considerando apenas os dados tributários, a diferença é ainda mais escandalosa: o 1% mais rico ganha 72 vezes mais que os 50% mais pobres. A tendência, infelizmente, não é de redução desse abismo. A metade mais pobre teve uma retração de 1,6% de seus rendimentos entre 2016 e 2017, enquanto no mesmo período os 10% mais ricos tiveram crescimento de 2%.

Coincidência ou não, o futebol segue os mesmos passos, e a reapresentação das equipes da primeira divisão neste início de ano mostra que o abismo financeiro entre clubes ricos e pobres nunca foi tão grande. A contratação, pelo Flamengo, do jogador De Arrascaeta por 13 milhões de euros – cerca de R$ 55,3 milhões, numa negociação complicada com o Cruzeiro, é só um exemplo da disparidade dos recursos financeiros de cada clube – que tende a se alargar, se analisarmos os números de anos anteriores e as previsões para 2019.

Foto: André Teixeira

Comecemos pela cota de transmissão do Campeonato Brasileiro. Em 2018, Flamengo e Corinthians levaram R$ 179,6 milhões; Palmeiras e São Paulo, R$ 135,5 milhões, e o Vasco, quinto na lista, R$ 125,5 milhões. Os cinco últimos no ranking dos 20 clubes ficaram com R$ 22,3 milhões, mais de oito vezes menos. Para 2019, o Flamengo conta com R$ 327,1 milhões da TV, à frente de Corinthians, com R$ 271,1 milhões, Palmeiras e São Paulo, com R$ 173,6 milhões, e Santos, com R$ 105,5 milhões. Os cinco últimos, por sua vez, terão direito a R$ 55,4 milhões, quase seis vezes a menos. O cálculo é feito com base no número de torcedores.

Acrescentado-se outras fontes de renda, como contratos publicitários, venda de jogadores, a discrepância aumenta, numa tendência que não é nova. Em 2017, entre as equipes da Primeira Divisão, o Flamengo, maior arrecadador, teve verbas 14 vezes maiores que o Atlético Goianiense, o primo mais pobre. No ano anterior, Corinthians, Flamengo e Palmeiras abocanharam, juntos, 43% de todo o investimento publicitário no esporte. Em 2019, o Flamengo tem a maior receita estimada – um total de R$ 750 milhões – e o Palmeiras, em segundo, projeta receber R$ 561 milhões. Na parte de baixo da lista, o CSA, de volta à elite depois de 31 anos, projeta modestos R$ 40 milhões. Uma diferença de quase 19 vezes entre duas equipes que disputarão o mesmo torneio.

Foto: André Teixeira

Essa concentração, evidentemente, se reflete nos plantéis. Enquanto uns poucos clubes se reforçam, outros perdem seus melhores jogadores. O Botafogo, por exemplo, vendeu o zagueiro Igor Rabello para o Atlético Mineiro e o meia Matheus Fernandes para o Palmeiras, numa tentativa de equilibrar as contas que, na prática, acaba reforçando o elenco de adversários diretos no Brasileirão. O caso do Palmeiras é emblemático: o clube conta com 47 jogadores, com valor de mercado estimado em 92,78 milhões de euros, enquanto o Avaí, lanterninha no quesito, tem 22, avaliados em 3,90 milhões de euros.

Difícil imaginar que, nesse panorama, a taça e as vagas para a Libertadores, torneio mais importante do continente, fiquem nas mãos de um clube com baixo orçamento. Embora o Campeonato Brasileiro seja considerado, pelo menos na propaganda, “um dos mais equilibrados do mundo”, a realidade desmente esse bordão. É verdade que desde 2003, quando o sistema de pontos corridos foi implantado, sete clubes conquistaram o título, mas concentrados em três estados – os quatro grandes paulistas, Flamengo e Fluminense, do Rio, e o Cruzeiro, de Minas. Qualquer semelhança com a lista dos três maiores PIB´s entre as unidades da Federação não é mera coincidência.

Foto: André Teixeira

Por que nós, amantes do futebol, devemos nos preocupar com isso? Que diferença faz se uns poucos clubes têm uma montanha de dinheiro e os outros vivem com o pires na mão, vendendo a preço de banana os poucos bons jogadores que ainda conseguem revelar? Que me importa se cinco times entram no campeonato com chances reais de levar o título, enquanto os outros brigam contra o rebaixamento?

A questão é que o futebol, mais do que os outros esportes, tem entre seus grandes encantos a marca da imprevisibilidade. O inesperado, o imponderável, o inimaginável estão sempre ali, para o bem ou para o mal. Davi sempre pode acertar uma pedrada na testa de Golias, assim como o Flamengo perdeu um título para o Santo André em pleno Maracanã e a criticada Itália de Paolo Rossi desbancou o endeusado Brasil de Zico em 1982. As pernas absurdamente tortas de Garrincha deixavam saudáveis europeus estatelados no chão, assim como os baixinhos Romário e Maradona superavam, de cabeça, zagueiros até 30 centímetros mais altos. O Sobrenatural de Almeida de Nelson Rodrigues faz parte do jogo e de sua graça.

O maior equilíbrio possível entre duas equipes que se enfrentam é, desde sempre, uma das bases do futebol. Quem já jogou uma pelada sabe como funciona: tira-se o par ou ímpar e cada “capitão” vai montando seu time. A ideia é simples: duas forças semelhantes se enfrentando, com resultado imprevisível. É óbvio que todos adoraríamos ver nossos times, repletos de craques, encarando um bando de aposentados pernas-de-pau, numa vitória quase certa, mas isso rapidamente provocaria bocejos ou uma olhadinha no outro canal. O espetáculo só se sustenta se houver um mínimo de suspense e emoção.

O economista português Paulo Reis Mourão, professor de economia da Universidade do Minho e autor de estudos sobre finanças dos clubes europeus, defende a tese de que os campeonatos competitivos geram mais receitas do que os dominados por uma elite de dois, três ou cinco equipes de ponta. Ele não prega no deserto: a UEFA – União das Associações Europeias de Futebol – defende a ideia do fair play financeiro, um conjunto de regras lançado em 2010 e implementado no ano seguinte com dois objetivos básicos: promover a gestão de clubes economicamente responsáveis e tornar os campeonatos europeus mais equilibrados.

Foto: André Teixeira

Em 2018, diante das milionárias contratações de Neymar e Mbapeé pelo Paris Saint-German, as normas começaram a ser reavaliadas, mirando nos clubes mais abonados. Entre as possíveis medidas, a limitação de um teto para contratações por “janela” e uma espécie de imposto” por contratações que ultrapasem determinado valor. O endurecimento tem um objetivo primordial: atingir o maior equilíbrio possível nas competições.

No Brasil, infelizmente, clubes, CBF e patrocinadores vão na contramão dessa tendência – da mesma maneira que a sociedade em geral caminha para o crescimento da desigualdade. Espelhos um do outro, esporte e país seguem o mesmo roteiro, e tudo indica que o final da trama não será feliz.