Durante a festa, o protesto

Marcada pela campanha “Não é Não”, Carnaval 2018 não escapou de denúncias de assédio contra mulheres e população LGBT


por Petra Fantini

Foto: Paula Molina/Henrique Fernandes.

Neste Carnaval, o protesto das mulheres contra o assédio esteve estampado na pele. Iniciada no Rio de Janeiro, a campanha “Não é Não” distribuiu mais de 27 mil tatuagens temporárias por todo o país. A ideia do projeto surgiu em janeiro de 2017, no Rio de Janeiro, quando um grupo de amigas se uniu para fazer de sua indignação contra casos de assédio um movimento de luta por uma sociedade mais igualitária. Na época, foram mobilizadas 40 mulheres e arrecadadas quase R$ 3 mil para produzir 4 mil tatuagens a serem distribuídas no Carnaval carioca. “Ainda que a tatuagem saia com água e sabão, a mensagem veio para ficar”, acredita o grupo. Em 2018, as produtoras Aisha Jacob, Luka Borges, Barbara Menchise e Julia Parucker estiveram à frente da campanha.

Passado o Carnaval, os organizadores estão em processo de coleta de dados e relatos para se saber quais os resultados efetivos da campanha. Mas, segundo Luka, alguns relatos já dão conta de que “a tatuagem coloca um ponto final na insistência de alguns caras. As mulheres se sentem mais confiantes e seguras, como se a tatuagem fosse um escudo”.

E como foi o papo com os homens? Luka conta que entre eles houve de tudo. “Teve homem que nos acusou de bullying, por não entregarmos a tatuagem para eles”, diz. É um princípio da campanha não permitir que homens usem o adesivo. Luka explica sobre essa decisão em texto na plataforma Médium (http://bit.ly/TatuagensHomens).

Por outro lado, em grupos nos quais o assunto da violência contra a mulher já era tratado, a recepção foi diferente. “A gente vê que em algumas bolhas, onde já houve denúncias sérias a respeito de casos de estupro, de abuso, está chegando uma maturidade em alguns caras, de entender e respeitar mais as mulheres. Isso é bem importante. Mas acreditamos que ainda temos muitos carnavais pela frente”, disse.

Em Belo Horizonte, o movimento chegou por meio de financiamento coletivo que possibilitou a distribuição gratuita de 4 mil adesivos. Os pontos focais do “Não é Não” foram os blocos parceiros Alô, abacaxi, É o amo!, Garotas Solteiras e Acorda Amor.

“Isso é de toda importância por fortalecer uma rede de mulheres pensantes que entendem a importância desse processo de ressignificação do nosso corpo”, diz Ana Helena Baccarini, membra do Alô, abacaxi, responsável pela distribuição do adereço-protesto. “A tatuagem vem nesse sentido, de a gente usar o nosso corpo, que é nossa existência, contra a objetificação e o assédio, e como ponto de partida para um diálogo”, explica. “É o momento de falar ‘não’ para o que não se concorda e não se sente confortável”, diz Ana.

Ela não presenciou casos de abuso no seu bloco, ao contrário de Daniela Ponce de Leon, regente do Garotas Solteiras, que viu muitas dessas cenas – ainda que, por ter ficado em local privilegiado, trabalhando em cima dos trios elétricos, não tenha sido vítima direta. “Eu vi um cara jogando bebida em cima da menina depois que ela reclamou que ele a estava assediando”, conta.

A estratégia adotada pelos organizadores dos blocos contra abusos tem sido parar a música e expor o agressor. “Isso é humilhante (para o agressor), e para nós, que estamos lutando contra o assédio, é maravilhoso porque é a oportunidade que temos de mostrar que não vamos mais ficar caladas, não vamos aceitar como antes”, afirma Daniela. “E eu ainda o vi jogando bebida nas meninas da bateria, querendo empurrar, bater, mandando tomar no cu”, completa. A situação poderia ter se agravado não fosse a presença de cinco policiais ao lado, que dispersaram o agressor e seu grupo de amigos.

Para Daniela, essa é uma das maiores lições que os homens podem levar desse tipo de abuso. “O cara que assedia normalmente não está sozinho. Ele não vai agir se ele não tiver o respaldo de outros homens. Enquanto homens se silenciarem, enquanto homens não disserem nada para o amigo abusador, ele vai continuar assediando”, afirma.

Nuances

O abuso não se dá uniformemente. Há diferentes grupos que passam por opressões distintas. Mulheres negras, por exemplo, tem na cor de sua pele um agravante para o desrespeito.

A blogueira e youtuber Lívia Teodoro, do canal Na Veia da Nêga, observou uma mudança no comportamento dos foliões, mas ressalta: os abusos cometidos contra etnias e religiões continuam acontecendo.

“Neste Carnaval percebi que a quantidade de homens fantasiados de mulheres negras aumentou e muito. Perdi a conta de quantos homens fantasiados de Jojo Todynho (MC do hit “Que tiro foi esse”) me deparei em BH. E também quantas vezes minha amiga, que é negra e gorda, foi abordada com ‘piadas’ sobre a cantora”, denuncia.

 

Foto: Paula Molina/Henrique Fernandes.

Já as lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros (LGBT) muitas vezes correm o risco de ter sua sexualidade explorada ou sofrer violência física. A partir da percepção de que “os meios tradicionais são pouco eficientes para receber e acolher denúncias de LGBTfobia”, e com o objetivo de “funcionar como uma primeira forma de coletar dados que geralmente não são reunidos e publicizados”, o coletivo artístico “Beijo no seu preconceito” e o movimento “Frente Autônoma LGBT” trabalham, desde 2017, com o formulário “Carnaval BH sem LGBTfobia!” (http://bit.ly/CarnavalSemLGBTfobia). Entre as perguntas, cujos resultados serão encaminhados aos órgãos e autoridades responsáveis, são abordadas questões relativas a gênero, orientação sexual e etnia do denunciante, o tipo e a natureza da agressão sofrida (transfobia, bifobia, lesbofobia, homofobia, misoginia, racismo, intolerância religiosa e/ou preconceito de classe).

“Ele (o formulário) surge a partir de uma convocação que a plataforma ‘Beijo no seu preconceito’ faz para o Carnaval de Belo Horizonte – para os blocos de rua, foliões, ativistas, militantes, artistas -, para pensar ações do Carnaval”, conta Igor Leal, membro do coletivo.

O assunto da violência sofrida pelo público LGBT é urgente e tem se agravado nos últimos anos. Minas Gerais é o estado campeão em morte de transsexuais e travestis, segundo o Mapa dos Assassinatos de Travestis e Transexuais no Brasil em 2017, lançado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) (http://bit.ly/MapaAssassinatoTrans).

Além disso, conforme o relatório de 2017 da Organização Não-governamental (ONG) Grupo Gay da Bahia (GGB) (http://bit.ly/MortesLGBT), Minas Gerais foi o segundo do país com maior número de mortes de LGBTs por homicídio ou suicídio, com 43 casos.

O último ano foi também o que mais registrou mortes nesses grupos de pessoas no país desde que o GGB começou a coletar dados, há 38 anos. “Durante o governo FHC, matavam-se em média 127 LGBT por ano; no governo Lula 163, e no governo Dilma/Temer, 325 mortes por ano. O número subiu para 445 nesse último ano”, diz o texto. Internacionalmente, o Brasil é o campeão de crimes contra as minorias sexuais.

A intenção é levar a preocupação com esses dados também para o Carnaval, segundo Gustavo Ribeiro, da Frente Autônoma LGBT, “tanto entre pessoas que possam ter expressado intolerância, inconformismo com a nossa existência, com os nossos corpos na cidade, quanto em relação à violência institucional. Desde policiais militares, policiais civis, guardas municipais, bombeiros que se recusam a fazer o atendimento ou que usam da força de maneira desproporcional contra pessoas LGBTQIA (as três últimas letras se referem aos queers, intersexuais e assexuais)”. A identificação desses casos serve como ferramenta de cobrança do poder público.

Já no ano passado, o grupo, que surgiu em novembro de 2016, cobrou ações de segurança de órgãos públicos para preservar a vida de LGBTs. Comitês ligados às Secretarias de Estado de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania (Sedpac) e de Segurança Pública (Sesp) promovem encontros com os ativistas e se mostraram abertos para o diálogo, mas não realizaram nenhuma medida efetiva, de acordo com Gustavo.

Segurança

Em coletiva de imprensa realizado na quinta-feira (15/02) pós Carnaval, órgãos de segurança trouxeram números positivos com relação à festa do ano passado, com diminuição em todos os delitos: roubos, violência, acidentes rodoviários. O bom resultado foi creditado ao planejamento de muito tempo, que incluiu um aumento de mil policiais nas ruas com relação ao último ano. Quanto à violência contra a mulher, de quarta-feira a sábado de Carnaval a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) da Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG) recebeu 71 solicitações para encaminhamentos de medidas protetivas (por meio das quais três homens foram presos e quatro conduzidos), enquanto em 2017 esse número foi de 61. Tendo como referência o mês de janeiro de 2018, a média diária foi de 22 pedidos – desta forma, o número de solicitação de medidas protetivas durante o Carnaval é menor comparado a período fora de data festiva.

“A mitigação de pequenas ocorrências, pequenas brigas, para que não tivéssemos, principalmente nos maiores blocos, o que chamamos de efeito manada – o momento em que há correria, podendo causar pisoteamento das pessoas – conseguimos pelo posicionamento dos policiais”, afirmou o Major Flávio Santiago, chefe da Sala de Imprensa da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG), acrescentando que essa mitigação inclui os casos de assédio. “A presença do policial militar próximo a esses eventos fez com que o comportamento do assediador também fosse diferente”, diz. Outra medida que contribuiu para o combate a esse tipo de abuso, segundo o Major, foi a campanha de conscientização realizada em redes sociais.

O delegado-assistente da Polícia Civil de Minas Gerais, Alessandro Amaro da Matta, também observou uma mudança no comportamento dos homens e diminuição de casos de assédio em função das campanhas. Sobre o tema da violência contra a mulher, Alessandro contou ainda sobre o levantamento de dados que foi feito nas Delegacias de Mulheres do estado durante o Carnaval e levado à Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) do Ministério da Justiça. A ideia é conseguir apoio para que as delegacias sejam aprimoradas, com a contratação e capacitação de profissionais para o atendimento às vítimas. O chefe adjunto da Polícia Civil, Gustavo Adelio Lara Ferreira, ressalta a importância de garantir o atendimento adequado a essas mulheres, que já chegam fragilizadas, assustadas e muitas vezes envergonhadas para fazer a denúncia.

Foto: Maysa Mundim Zucheratto/Alô Abacaxi.

Já em resposta aos números de violência levantados pela Antra e o Grupo Gay da Bahia, a Sesp afirmou, por meio da assessoria de imprensa, que “Minas é um dos poucos estados no qual a vítima pode exigir que o policial preencha no Registro de Eventos de Defesa Social (Reds), nome do antigo boletim de ocorrência, a causa presumida da violência baseada em LGTfobia. Esta ação resguarda a vítima e ajuda o Governo a ter um panorama mais real da violência contra a população LGBT no Estado”, diz o texto. O Reds também reconhece o uso do nome social e possui espaço para que se declare a identidade de gênero ou orientação sexual.

Denúncias do tipo também podem ser encaminhadas para a Coordenadoria de Direitos Humanos (NAC) da Polícia Civil, que atende esse tipo de ocorrência de forma especializada. “Ao longo de 2017, a Coordenadoria Estadual de Enfrentamento às Fobias Relacionadas à Orientação Sexual e Identidade de Gênero de Minas Gerais (Cepef) da Sesp, em parceria com o NAC e com representantes de movimentos sociais, realizou abordagens à população LGBT nas ruas da capital mineira com o objetivo de esclarecer os serviços especializados de segurança oferecidos pelo núcleo”, continua a assessoria.

O mapeamento da violência sobre as comunidades LGBT disponibilizados pela secretaria partem do preenchimento do Reds. Portanto, as informações foram obtidas a partir da autodeclaração das vítimas (ou, no caso de homicídio, do agente público que atende a ocorrência, tendo em vista as circunstâncias e/ou pessoas relacionadas ao fato – testemunhas, solicitantes, parentes, amigos etc.). As violências tratadas não estão vinculadas à motivação dos crimes – ou seja, não se pode dizer que determinadas pessoas foram vítimas de algum crime porque possuem uma determinada orientação sexual.

O quantitativo de casos em que a pessoas LGBTs foram vítimas em Minas Gerais entre 2016 e 2017 pode ser acessado neste link: http://bit.ly/VítimasLGBT.