"Estou aterrorizada", diz advogada agredida por PMs
Mulher negra de 29 anos, que fumava cigarro de palha, recebeu chutes e tapas e foi vítima de estupro por parte dos policiais, no condomínio onde mora, em Contagem. OAB-MG cobra providências do comando da PM
Por Lucas Simões
As dores que a advogada Sandra*, de 29 anos, sente pelo corpo podem durar até três meses, segundo os médicos. Mas as violências que ela sofreu na última semana, ao ser agredida por três policiais militares e abusada sexualmente por um deles, dentro do condomínio onde mora, em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, não têm tempo para cicatrizar.
“Não tem como explicar o ódio com o qual fui tratada. E eu estou aterrorizada”, disse a advogada, em entrevista ao O Beltrano. Ela está há uma semana fora de casa com a filha de 7 anos por medo de um retorno dos policiais.
Na terça-feira (28/11), a Comissão de Direitos Humanos (CDH) da Ordem dos Advogados do Brasil de Minas Gerais (OAB-MG) ouviu a vítima e decidiu denunciar o cabo Renato Pereira da Silva, o soldado Raphael Lucas de Oliveira e o sargento Reinaldo Magalhães Marques por agressão, estupro e racismo, com base no depoimento da vítima e do advogado que a acompanhou na delegacia. Os três policiais são lotados na 26ª Companhia do 39ª Batalhão de Polícia Militar em Contagem.
O caso aconteceu no dia 22/11, uma quarta-feira, em um condomínio do bairro Eldorado. Segundo o boletim de ocorrência, a PM foi chamada por volta das 11h para atender a reclamação do síndico do prédio sobre “divergências entre vizinhos”. A advogada diz que estava colhendo acerolas na área comum do edifício quando viu a viatura da PM e resolveu checar o que acontecia.
“Eu subi em casa, troquei de roupa e fui ver o que estava acontecendo porque já tive desentendimentos com o síndico e pensei que pudesse ser algo (relacionado a isso). Me apresentei como moradora do prédio e perguntei se estava tudo bem. Eu estava fumando um cigarro de palha na área aberta. Quando fui falar com os policiais, um deles, o cabo Renato, mandou que eu apagasse o cigarro para conversar com ele. Eu disse que não tinha necessidade e ele simplesmente veio para cima de mim com o dedo em riste”, relata a advogada.
Segundo a denúncia feita por Sandra*, o cabo Renato acertou um tapa no lado direito de seu rosto que a jogou no chão e, logo em seguida, os outros dois militares, soldado Raphael e sargento Reinaldo, ajudaram a imobilizá-la. “Eles me colocaram de bruços, me algemaram, pisaram nos meus braços, chutaram meu corpo. Um deles, o mais gordinho, passou a bota entre as minhas pernas e pelo meu corpo. E esfregou os quadris dele em mim. Eu pedi várias vezes para parar e ele só ria”, disse a advogada. “Eu ainda fui arrastada pela área comum do prédio à força, antes de ficar quase meia hora num camburão, exposta na porta do meu condomínio”, disse Sandra*.
No boletim de ocorrência os militares justificam a prisão da vítima por “desacato”. Eles alegam que ela se referiu aos policiais como “vermes”. “Eu realmente disse isso uma vez, mas já estava no chão, sendo agredida, presa e abusada. Eles queriam o que?”, completa a vítima.
A advogada foi encaminhada para a Delegacia de Plantão de Contagem, onde passou mais de dez horas. Ela e os militares foram ouvidos pelo delegado Daniel de Carvalho Isidoro, que abriu investigação sobre o caso. A vítima só foi liberada da delegacia por volta de meia-noite e, ainda assim, foi conduzida contra a sua vontade numa viatura da Polícia Militar para o Instituto Médico Legal (IML) de Belo Horizonte, onde realizou exame de corpo de delito que comprovou as agressões. “Além do inchaço no rosto, pernas e braços ralados e doloridos, um nervo da minha mão esquerda inflamou. Fui ao médico de novo, que me disse que pode ficar assim até por três meses. Está completamente dormente”, disse a vítima.
O advogado Fábio Costa Silva, da Comissão de Direitos Humanos da OAB-MG, que acompanhou o caso, disse que a vítima também teve o direito a um advogado negado . “Eu mesmo ia levá-la para o IML, mas os militares não deixaram. Tive que ir acompanhando a viatura no meu carro. Isso é mais uma violação que a vítima sofreu. Ela também solicitou advogado quando estava sendo presa, reafirmou que era advogada, e os policiais disseram que ela não estava em exercício da advogacia no momento e que ela não teria esse direito. O que é um absurdo”, disse Fábio.
Dormindo fora de casa há uma semana, a advogada está sem trabalhar e sequer conseguiu levar a filha de 7 anos para a escola nesse período. Ela ainda conta que a criança ouviu toda a confusão e as agressões do apartamento no sexto andar. “Os policiais ainda tentaram entrar na minha casa e tirar minha chave à força. Duvidaram que eu tinha filha. Mas eu gritei tanto para ela não abrir a porta que ela ficou com medo e não abriu. Agora, eu é que tenho medo de voltar para casa”, disse.
A denúncia completa, elaborada pela OAB-MG contra os policiais militares, será encaminhada ao comandante-geral da Polícia Militar de Minas Gerais, coronel Helbert Figueiró de Lourdes, ao Secretário de Estado de Defesa Social, Sérgio Barboza Menezes, ao governador Fernando Pimentel (PT), à Ouvidoria Geral da Polícia, ao Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e à Corregedoria da Polícia Militar.
Segundo o presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-MG, Willian Santos, os policiais serão denunciados por tortura, estupro, racismo e lesão corporal, proporcionalmente à atuação de cada um deles no caso. “O que houve foi um conjunto de agressões. A vítima também relata que, antes de ser agredida, chegou a estender a mão para um dos policiais e ele se recusou a cumprimentá-la. Houve uma postura nítida de racismo, inclusive na delegacia, onde a advogada foi filmada por policiais que debocharam dela e duvidaram que ela pudesse ser advogada. Nós exigimos providências proporcionais a esses policiais agressores”, disse Willian.
A reportagem tentou contato com o major Nilton, comandante da 26ª Companhia do 39º Batalhão de Polícia Militar e superior direto dos policiais acusados, mas não conseguiu localizá-lo até a publicação da matéria.
Leia abaixo a denúncia completa da OAB, publicada com exclusividade por O Beltrano:
*Nome fictício para proteger a identidade da vítima