Lula fala ao O Beltrano

Ex-presidente conversou com Kerison Lopes, repórter do O Beltrano que acompanhou a Caravana em Minas e outros da mídia alternativa


Por Kerison Lopes

Enviado especial de O Beltrano

Fotos: Ricardo Stuckert

O Beltrano acompanhou de perto a Caravana de Lula em Minas, encerrada hoje (30/10) em Belo Horizonte após oito dias. O jornalista Kerison Lopes, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Minas Gerais, viajou dentro do ônibus de Lula e esteve presente em todos os atos e eventos. Ontem, Kerison entrevistou o ex-presidente, juntamente com um pequeno grupo de jornalistas (também participaram representantes do Brasil de Fato, Jornalistas Livres, Telesur, Rede Brasil Atual e Mídia Ninja). Lula fez um balanço da caravana e analisou o atual momento político. Abaixo, os principais trechos da entrevista.

 

Porque fazer as caravanas?

Eu vou dar uma explicação de onde nasce a ideia das caravanas. Eu disputei as eleições em 1989 e, depois que elas terminaram, descobri que nenhum candidato que disputa as eleições para presidente conhece o Brasil. O cara conhece por literatura, por notícia de jornal. Numa campanha, você pega um avião onde mora e desce numa outra capital, num aeroporto. Pega um carro, vai para o palanque, faz um discurso, sem nem conhecer as pessoas que estão no palco. Então volta, pega avião e vai para outra cidade. Você termina não tendo noção dos problemas, da cultura, das desigualdades e de como vive cada pessoa em cada região. Então, a partir de 1992, eu resolvi tomar a atitude de viajar o Brasil, para conhecer um pouco de suas entranhas, sua alma, a mega diversidade cultural que nós temos. São vários “Brasis” dentro desses oito milhões e meio de quilômetros quadrados que não se conhece.

 

A televisão brasileira não traz nenhum minuto da atividade cultural de outro estado. Só as coisas de São Paulo e Rio é que são mostradas no país inteiro. Então, os meninos e meninas de Roraima, do Amapá, de Manaus, têm que conviver, seja sábado ou domingo, com Luciano Huck e com Faustão. Não tem nada deles na televisão. A diversidade brasileira não aparece nos meios de comunicação do Brasil e isso é gravíssimo.

 

Então, eu resolvi conhecer. Nós fizemos a primeira caravana. Eu repeti o trecho que eu fiz quando vim para São Paulo em 1952, com sete anos, de ônibus até São Paulo. Depois nós fizemos do Oiapoque ao Chuí. Fizemos toda a parte do Nordeste, quase que repetindo essa que nós fizemos agora. Também realizamos a do Sul, depois fizemos a da Amazônia, sendo 15 dias de barco. Foi uma coisa muito interessante. E a partir daí, eu achei que a gente deveria revisitar o Brasil. Eu já tinha passado aqui no Vale do Jequitinhonha várias vezes.

 

E essa revisita que eu estou fazendo aqui é para a gente ver o que? Houve um avanço considerável nessa região, com a universidade, com as escolas técnicas, com o Pronaf, com o Luz para Todos. E a decepção é que muita coisa está paralisando e diminuindo. Então, volta a consagrar-se o empobrecimento. As pessoas tinham subido um degrauzinho, e eles estão achando que tem que descer um degrau. Toda vez que o Estado faz cortes, eles recaem em cima do povo pobre, porque ele recai em cima de quem precisa do Estado. Isso é a coisa que mais me preocupou nessa viagem.

 

O pobre não é um problema. Quando você coloca ele dentro da economia, esse país dá um salto de qualidade e é isso que eu acredito.

 

Quando eu era presidente, eu dizia para os meus meninos da economia: cada vez que eles faziam apologia à macroeconomia, eu dizia que ela só dá certo porque eu tenho microeconomia funcionando lá em baixo, que faz o pobre trabalhar, comprar e consumir mais. Aí é um conjunto de políticas públicas. A pessoa não tem noção do significado do aumento do salário mínimo e do que vale uma aposentadoria numa cidade pequena no interior. Então, o meu otimismo em relação ao Brasil é que ele pode dar certo na hora que tiver gente que conheça e goste do país e que queira fazer ele crescer. E, na minha opinião, o jeito mais extraordinário é colocar o pobre dentro da política econômica.

 

Fotos: Ricardo Stuckert

Parece que existe uma equação matemática: quanto menor o IDH da cidade, maior o apoio ao senhor e à caravana. O senhor percebeu isso?

Você tem alguns estados que tem o setor da classe média que acha que perderam no nosso governo. Tem muita gente que pensa assim: o rico ficou mais rico, o pobre ficou menos pobre e a classe média empobreceu. Mas, não é que eles ficaram mais pobres, é que o pobre chegou mais perto deles. Não é porque ele caiu, é porque o pobre subiu. E quanto mais ele subir, mais o país vai crescer e se desenvolver. O fato das regiões mais pobres me darem um apoio maior é porque os benefícios foram maiores para eles. As pessoas que moram no centro de São Bernardo do Campo ou na avenida Paulista não têm noção do que é um programa Luz para Todos e de, num passe de mágica, tirar a pessoa do século XVIII, das trevas, e colocar no século XXI, com um investimento de R$ 20 bilhões. Agora, nenhum empresário privado quer colocar luz na casa de uma pessoa que não pode pagar, mas pela Constituição, ela tem direito a isso. Então quem tem que fazer? O Estado.

 

No caso do “Minha Casa, Minha Vida”, para fazer com que as pessoas que ganham um salário mínimo pudessem comprar uma casa, temos que fazer subsídio para ele ter dinheiro para comer. Porque se ele ganha um salário mínimo e vai pagar 400 reais de prestação, ele não come. Ele precisa comer, vestir, pagar conta de luz e de água… Então nós fizemos um subsídio para que a prestação, em vez de ser de R$ 400, fosse R$ 80. Custa caro? Custa. Mas ou o Estado faz isso ou ele não cumpre a Constituição de dar direito ao pobre morar.

 

É por isso que essas pessoas sentiram o efeito mais rápido das políticas do nosso governo. O Pronaf, por exemplo, era algo do Sul do país. Quando você sai de R$ 2 bilhões para R$ 30 bilhões, em 2014, é porque você nacionalizou o programa. Ele chegou na Paraíba, no Rio Grande do Norte, no Piauí, na Amazônia, no Amapá… O financiamento se espalhou pelo território nacional e essas pessoas que, até então, não tinham acesso a nada, são as pessoas que estão mais próximas de nós hoje.

 

Fotos: Ricardo Stuckert

Quando nós criamos um programa chamado PAA, era para comprar alimento daquelas pessoas que produziam e não tinham para quem vender e garantir que esse alimento chegasse na escola. Era um programa excepcional. Se você perguntar para um pequeno produtor ou para um companheiro do Sem Terra, ele vai dizer que o PAA é a coisa mais extraordinária que nós criamos, porque era a certeza de plantar e vender. E eles acabaram com isso agora.

 

É aquilo que a gente dizia durante a campanha: nós, que comemos todo dia, temos que estender a mão para as pessoas que não comem. Quando elas começam a comer, elas ganham força para trabalhar, irão receber um salário e vão ajudar outros. Então é normal que nossa política tenha chegado primeiro nas pessoas mais necessitam. E isso tem que voltar a acontecer.

 

Daqui para a frente, a gente vai ter que recomeçar a cunhar a expressão “distribuir riqueza” e não “renda”, porque a casa é riqueza. Educação é riqueza perene. A pessoa aprendeu, é para o resto da vida. Isso significa riqueza. A terra, por exemplo, é outra riqueza.

Nós agora temos que dizer em alto e bom som: se voltarmos ao governo, vamos fazer de forma muito agressiva uma política de titularização das terras, sobretudo nas grandes periferias do país. Porque o cidadão que mora num barraquinho, quando recebe o título de sua propriedade, a primeira coisa que ele faz é comprar tijolo para fazer a casa dele. Isso é riqueza. É um patrimônio dele que está aumentando.

 

Então, eu vou continuar dizendo sempre que a nossa obrigação é governar para todos, mas alguns precisam mais do que os outros. E é para os que precisam mais que nós temos que cuidar melhor.

 

O senhor está falando de riquezas, e tem uma riqueza que estamos correndo o risco de perder, que são os direitos com a reforma trabalhista. O que o senhor acha da perda de mais essa riqueza?

 

O que está acontecendo no Brasil, o desmonte de direitos dos trabalhadores, é algo mundial. Sobretudo depois da crise de 2008, quando a gente constata que o sistema financeiro que quebrou, volta fortalecido. O sistema financeiro voltou mais forte e ganancioso. Então, no mundo todo, as conquistas sociais do pós guerra começam a aparecer no discurso da direita como se fossem um prejuízo para o desenvolvimento de cada país.

 

Fotos: Ricardo Stuckert

Nós vamos ter que fazer muito. Temos que aproveitar esse desmonte da legislação trabalhista para apresentar o que o movimento sindical quer. Não é ficar fazendo campanha contra, porque já perdeu. Então a CUT, que é a central mais importante que existe no Brasil, tem que apresentar uma proposta à sociedade brasileira. Como a gente não teve forças para parar… Eu estou com o discurso que eu estava mais ou menos quando caiu o Muro de Berlim: quando ele caiu, permitiu a esquerda pensar, porque você vivia baseado num modelo único. Então quando ele cai, libertou um pouco as pessoas de pensar. O desafio que está colocado para o movimento sindical agora é de ver, outra vez, o que é bom para o trabalhador e que o país pode sustentar. E o movimento sindical está preparado para isso.

 

O senhor tem defendido que, se eleito, a instituição de um referendo revogatório das reformas de Temer. A reforma trabalhista estaria nesse referendo? Como seria esse referendo?

 

Como seria, vai depender de como o Congresso votar. É o congresso que tem que aprovar. Estou falando de referendo revogatório porque se nós não tivermos autorização da sociedade, fica muito difícil mudar,por exemplo, a PEC que limita os gastos com educação e saúde. Na verdade, o dinheiro que se coloca na saúde não é gasto; o dinheiro que se coloca para salvar vidas é investimento. Construir um hospital novo, um aparelho odontológico novo é investimento. Você está dotando o país de equipamento que podem melhorar a vida do povo. E educação mais ainda.

 

Quando nós colocamos o pré-sal como passaporte do futuro, era porque o pré-sal era a chance que o Brasil tinha de investir o royalty do petróleo na educação e recuperar o desmando do século 20.

 

É por isso que vamos propor um referendo revogatório durante a campanha e o mandato. Não adianta a gente reclamar, reclamar, reclamar e quando vai às urnas o que está eleito é aquilo que está lá (no Congresso). É preciso que o povo saiba que as mudanças que têm que ser feitas ou saem por uma revolução ou pela eleição.

 

Como somos candidatos, nós acreditamos que seja através de uma eleição.

 

Fotos: Ricardo Stuckert

Durante o chavismo, na Venezuela, foram 21 eleições em 18 anos. Qual a importância do exemplo da Venezuela no processo latino-americano?

 

Eu era presidente do Brasil e toda vez que eu viajava para qualquer país da Europa o pessoal vinha falar comigo que o Chávez não era democrático e que na Venezuela não existia democracia. Eu dizia que o erro do Chávez era ser democrático demais. Qualquer coisinha e ele fazer uma votação. O problema para seus adversários é que ele ganhou todas.

 

Eu defendo a Venezuela não é porque eu era amigo do Chávez. Me lembrou que em Quito, na posse do [Lucio] Gutiérrez na presidência do Equador, a Venezuela estava uma situação difícil e eu propus criarmos o Grupo de Amigos da Venezuela. E criamos um grupo de amigos do qual o Brasil participava. O Fidel ficou muito chateado porque eu propus (a entrada) dos EUA e da Espanha.

 

Então, toda vez que alguém se manifestava contra a Venezuela, eu dizia que o problema da Venezuela era excesso de democracia. Não era falta de democracia. E ainda hoje eu fico irritado quando vejo o presidente dos Estados Unidos dar palpite sobre a Venezuela. Ele que cuide dos EUA e deixa a Venezuela cuidar da Venezuela. Por isso fiquei feliz com essa vitória do Maduro, porque acho que foi uma coisa importante.

 

O povo se manifestou, a oposição foi votar e o governo brasileiro atual não tem moral para falar sobre a Venezuela. Vai propor uma comissão de investigação… Manda o Temer fazer uma comissão para investigar o impeachment, não as eleições (da Venezuela). Eu sou muito solidário à Venezuela.

 

Porque a mídia tradicional deu pouca cobertura à caravana?

 

Eu já aprendi a me conformar com o comportamento da imprensa. A imprensa escrita está agonizando há tempos. Eles têm noção que o povo não quer mais sujar as mãos para ler um jornal e também porque o povo não vai gastar dinheiro com uma notícia que eles leem em casa, na internet.

 

Depois da internet, tudo ficou velho, inclusive a televisão. Sinceramente, eu faço minhas caravanas sem me preocupar com a chamada “grande imprensa brasileira”. Não me incomodo, não estou preocupado com o que ela fala. Para mim, ela não existe. Eu não lembro de um período que a imprensa teve condescendência comigo.

 

Foto: Ricardo Stuckert

Em vários atos, o senhor disse que teria uma política diferente de mídia em um futuro governo. O que o senhor está pensado de ações e planos para comunicação no país?

 

Em 2009, fiz uma grande conferência de comunicação. Naquela ocasião, você tinha os grandes meios de comunicação que eram contra a conferência. Mesmo assim, algumas televisões participaram. O resultado foi muito satisfatório e preparamos uma proposta de regulação. A gente entendia que não era correto apresentar uma proposta como essa no final de um governo.

 

Então, deixamos para a companheira Dilma apresentar a proposta ao Congresso no começo do primeiro mandato dela. Não sei quais foram as razões, mas a companheira Dilma não apresentou. Certamente, porque alguém chegou no ouvido dela e disse “não, Dilma, o problema não é regular, mas conversar, falta diálogo”. Ela acreditou e continua apanhando.

 

Hoje, eu acho que ela tem o mesmo arrependimento que eu tenho de não ter feito uma discussão para regular. E eu não quero regular para censurar. Quem tem que censurar a televisão é o telespectador; quem tem que censurar o rádio, é o ouvinte. Não sou eu não.

 

O que eu quero é democratizar, na verdade. Quero garantir e fortalecer o direito de resposta porque não é possível que as pessoas mintam descaradamente, contem inverdades, destruam a vida das pessoas. De vez em quando, eu lembro que pegaram o ministro de Minas e Energia que eu tinha e fizeram um carnaval, que ele tava pegando um envelope com 100 mil dólares… No meu primeiro mandato até hoje aquele cidadão, que eu tirei do governo, por conta da denúncia, nunca foi chamado para depor. Eu sinceramente prefiro acreditar no que a gente está fazendo.

 

E financiamento? A rede Globo também recebeu dinheiro público e bastante.

Nós demos um passo importante, sobretudo com a chegada do companheiro Franklin Martins na Secom, que foi criar a mídia técnica. A gente tinha, mais ou menos, 340 meios de  comunicação que recebiam recursos do estado. Nós passamos para quase 4 mil. A mídia técnica permitiu uma evolução extraordinária. Mas eu acho que agora é preciso dar um pulo, não ficar só na mídia técnica.

 

O estado tem a concessão, dá a concessão… Então o estado tem que ter algum interesse. Se o Estado vai dar dinheiro só para a pesquisa, quem é que pode contratar o Ibope? O Estado precisa, também no meio da comunicação, garantir que recursos cheguem àqueles que não estão no Ibope. A internet precisa ter uma atenção maior do estado brasileiro em se tratando de meio de comunicação. Não dá para menosprezar a internet porque eles começam a criar os grandes meios de comunicação na internet. E, daqui a pouco, eles passam a ter dinheiro na televisão, no rádio e também na internet.

 

E a imprensa alternativa desaparece. Eu acho que muita coisa vai mudar. Obviamente, temos que ter muito cuidado porque precisamos saber qual é a correlação de força que vai chegar no governo em 2018. Não adianta nada eleger um presidente e só 30 deputados do nosso lado. Você vai ter que conversar, conversar, conversar e nem sempre é bom.

 

E sobre o recrudescimento da violência?

 

Temos vários exemplos de que a guerra às drogas falhou e que serve para o encarceramento da juventude negra. A gente tem o exemplo do caso do Rafael Braga, no Rio de Janeiro. O que o partido pensa sobre este tema da guerra às drogas e a descriminalização?

 

Faz uns três meses eu tive uma reunião com alguns companheiros que eram dependentes químicos. Depois eu tive uma reunião com 18 especialistas dos mais importantes do Brasil e agora eu conversei com o ex-ministro Padilha, que eu quero chamar para uma conversa com todas as instituições que têm políticas de bons resultados no enfrentamento da dependência química. A verdade é que a polícia, a repressão e a prisão não são soluções para enfrentar o problema das drogas. Então eu quero fazer um congresso com essa gente para definir como envolver a sociedade civil na construção de uma política pública capaz de dar ao dependente a garantia de que ele vai ser bem cuidado, e que pode deixar de ser um dependente químico.

 

O caso do Rafael é o descaso e a irresponsabilidade do Estado Brasileiro. Então eu quero tratar esse assunto com muito carinho.Vamos cuidar disso de outra forma. Mas é difícil, porque, na verdade, isso vira uma indústria que interessa a muita gente, exceto ao coitado do dependente, porque esse pula na água e depois percebe que não sabe nadar e não tem como chegar na margem. Então é aí que tem que entrar o Estado e garantir que ele possa chegar à margem.