Quilombos em risco

Muito em breve o Supremo Tribunal Federal irá julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade que muda as regras para a titulação de terras quilombolas


Por Maria Carolina Trevisan

 

Levem a sério o que disse o deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ), em abril deste ano. Segundo o pré-candidato a Presidência da República, representante da extrema-direita, a situação da distribuição de terras no país “está para mudar”. E ao tentar justificar a necessidade dessa mudança, ofendeu a população quilombola durante palestra no Clube Hebraica do Rio de Janeiro.

Ao mostrar o mapa do Brasil e a distribuição de terras indígenas e quilombolas, disse “eu fui num quilombola (sic) em Eldorado Paulista. O afrodescendente mais leve lá pesava 7 arrobas. Afrodescendentes de quilombos não servem nem pra procriar”, arrancando risos da plateia.

Bolsonaro é conhecido por suas grosserias inconsequentes. Mas, no caso específico, a iminência de mudança e retrocesso na questão da regularização de terras ocupadas por populações tradicionais é de fato assustadora.

Muito em breve, o Supremo Tribunal Federal irá julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3239, proposto pelo Democratas (DEM), que defende que o decreto 4.889/2003 é incostitucional. É este decreto que regulamenta como as terras ocupadas pelas comunidades quilombolas devem ser identificadas, reconhecidas, delimitadas, demarcadas e, enfim, tituladas.

A ação foi desengavetada pelo ministro Dias Toffoli, que havia pedido vista dos autos em 2015 para poder analisá-la. Neste momento, o julgamento tem um voto favorável à inconstitucionalidade, dado pelo relator, ministro Cezar Peluso, e um voto que julga improcedente a ação, da ministra Rosa Weber.

“Os direitos previstos no decreto que regulamenta a titulação das terras quilombolas são compatíveis e guardam respeito com a  Convenção 69 da Organização Internacional do Trabalho, um tratado internacional ratificado pelo Brasil em 2004”, afirma Juliana de Paula Batista, advogada do Instituto Socioambiental (ISA), que acompanha o julgamento. “Se o STF considerar que o decreto é inconstitucional, o arcabouço legal cai. A gente fica com um vazio normativo sem saber como a regulamentação será feita, o que vai afetar de maneira muito séria a efetivação dos direitos fundamentais da comunidade quilombola.”

O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT – sobre normas entre uma constituição e outra) garante aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras “o reconhecimento da propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. A existência da população quilombola foi reconhecida formalmente pelo Estado brasileiro em 1988. Foram necessários mais de 15 anos para que um decreto regulamentasse o artigo 68 da ADCT. Atualmente, existem mais de 3 mil quilombos identificados no país.

Segundo levantamento feito pela ouvidoria, se o decreto for declarado inconstitucional pelos ministros do Supremo, poderá prejudicar todos os povos tradicionais, ainda que o 4887 trate apenas do povo quilombola. “Qualquer resultado contrário ao direito dos quilombolas será uma licença para a violação dos direitos dos quilombolas e de todos os 14 povos tradicionais reconhecidos pelo Estado brasileiro”, declara Vilma.

“O que vivemos é um profundo retrocesso não apenas do ponto de vista de alegar a inconstitucionalidade do decreto. É preciso compreender que irá reforçar a escalada de violência no campo sem precedente na história”, alerta a socióloga Vilma Reis, ouvidora-geral da Defensoria Pública do Estado da Bahia.

Consequências

E, sobre a fala de Bolsonaro e suas consequências, no começo de outubro o Ministério Público Federal moveu ação contra o deputado, julgada na 26ª Vara Federal do Rio de Janeiro pela juíza Frana Elizabeth Mendes. A juíza condenou o deputado a pagar indenização no valor de R$ 50 mil por danos morais, que deverá ser revertido em favor do Fundo Federal de Defesa dos Direitos Difusos. Os advogados de Bolsonaro estão recorrendo.

Em sua decisão, ela diz: “Ao alcançarem a tal almejada eleição ou nomeação, deveriam agir como representantes de Poder, albergando os anseios gerais da coletividade e, mesmo que suas escolhas pessoais recaiam em interpretações mais restritivas ou específicas, jamais devem agir de modo ofensivo, desrespeitoso ou, sequer, jocoso. Política não é piada, não é brincadeira. Deve ser tratada e conduzida de forma séria e respeitosa por qualquer exercente de Poder. Neste contexto, resta evidenciada a total inadequação da postura e conduta praticada pelo réu, infelizmente, usual, a qual ataca toda a coletividade e não só o grupo dos quilombolas e população negra em geral.”

Maria Carolina Trevisan é jornalista e mantem o blog https://mariacarolinatrevisan.blogosfera.uol.com.br