Saúde mental contra o retrocesso

Seminário realizado na Câmara Municipal de Belo Horizonte discute políticas públicas de drogas em busca do ponto de vista das práticas libertárias


Por Petra Fantini

Publicado em 09/08/2018

Marcha da Maconha – São Paulo – 26/05/2018
Fotos: Mídia NINJA

Entre a perspectiva policialesca e a que prioriza direitos sociais, o debate sobre o tema das drogas pode ser acalorado. Pensando em entender e discutir quais são as políticas públicas do Estado sobre o assunto, a Câmara Municipal de Belo Horizonte recebe nesta semana, dias 10 e 11 de agosto, o seminário “Drogas: A Construção das Políticas Públicas e seus Efeitos Sociais”.

O debate será conduzido sob a perspectiva do SUS, da Luta Antimanicomial e da Redução de Danos. Entre os convidados está Julio Calzada, senador suplente do Uruguai, ex-Secretário Geral da Junta Nacional de Drogas e um dos responsáveis pelo processo de legalização, produção e comercialização da maconha durante o governo de José Pepe Mujica. A Vice-Procuradora Geral da República de 2009 a 2013, Deborah Duprat, também marcará presença ao lado de outros especialistas e estudiosos de todo o país.

Com ingressos esgotados, cerca de 400 pessoas devem participar da discussão que procura dar ênfase a políticas públicas que garantam direitos sociais básicos, como educação, moradia, cultura e lazer. “Se temos política pública focada principalmente no problema da segurança, o Estado então vai priorizar práticas como o combate do narcotráfico, com recurso policial, criminalização do uso e práticas punitivas. Nós temos que escolher, ou essa visão ou uma outra que diga respeito à saúde, à educação, às políticas públicas de moradia, cultura e lazer. Os efeitos sociais dessas escolhas são diferentes”, diz o assessor parlamentar Maicon Filipe Chaves, do gabinete do vereador Pedro Patrus (PT), um dos apoiadores do evento.

Um dos participantes do seminário é o uruguaio Julio Calzada – Foto: Divulgacão

Esta visão se baseia na construção de um Sistema Único de Saúde (SUS) antimanicomial, que defenda o não-asilamento e a autonomia das pessoas, conferindo-as lugar e direito à cidade. “Essa é uma preocupação nossa: será que o Estado está deixando para trás essa beleza que é a construção da política do SUS, que dá voz aos usuários e ajuda na inserção social?”, indaga Maicon. A questão das drogas é ampla e não se limita à repressão policial ou à saúde mental dos usuários, tocando na assistência social, prevenção, redução de danos e direito de ir e vir.

O seminário é realizado por diversos órgãos ligados à psicologia e à luta antimanicomial: Fórum Mineiro de Saúde Mental, Frente Mineira sobre Drogas e Direitos Humanos, Associação dos Usuários dos Serviços de Saúde Mental de Minas Gerais e Movimento dos Trabalhadores da Rede de Saúde Mental de Belo Horizonte. As entidades apoiadores são o vereador Pedro Patrus, deputado federal Patrus Ananias (PT), Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais (CRP-MG), Cáritas Brasileira e Centro de Referência dos Direitos Humanos da População em Situação de Rua.

Nova política nacional de drogas

Em março, o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD) aprovou a nova Política Nacional sobre Drogas (PNAD), apresentado em dezembro pelo ministro do Desenvolvimento Social Osmar Terra. O texto reforça o posicionamento contrário do governo à legalização de qualquer substância ilícita e tem como foco a promoção da abstinência nos tratamentos, tirando o protagonismo das medidas de redução de danos. O governo também favoreceu as parcerias entre União e comunidades terapêuticas para acolhimento de dependentes e não distingue usuários de dependentes químicos.

“A nova política de saúde mental, tanto para o campo das drogas quanto para o atendimento para pessoas em sofrimento psíquico, é uma afronta a toda a conquista de 35 anos da reforma psiquiátrica”, declara Filippe de Mello Lopes, conselheiro do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais que atua na região de Campo das Vertentes. Segundo ele, é nítido que o objetivo do novo texto é principalmente o de favorecer as instituições privadas de internamento de dependentes, muitas ligadas a igrejas.

“Quando fazem a construção da política, eles colocam como meta única e fundamental a abstinência. Para nós essa não é mais uma questão, uma vez que quando a gente atua tecnicamente nós percebemos que a promessa da abstinência é uma falácia. Há sujeitos que não têm como meta de tratamento a abstinência, mas sim o uso menos prejudicial”, diz Fillppe. O desejo da abstinência, explica, geralmente é momentâneo. Além disso, a abstinência é apenas uma das consequências possíveis das políticas de drogas, não a única.

Para o psicólogo, essa lógica remete às décadas de 1970 e 1980, que deu origem à chamada guerra às drogas. “A guerra às drogas pressupõe uma lógica moral de que um mundo sem drogas é um mundo possível. Não, não existe humanidade sem o uso de drogas”, define Fillippe. Pessoalmente, o profissional deseja que ocorra legalização e regulamentação de todas as drogas, semelhante ao que foi feito em Portugal em 2001, quando a punição pelo uso de drogas passou de prisão para multas nos casos de compra e posse de drogas para consumo pessoal durante 10 dias.

Assim, o ato deixou de ser crime para se tornar delito administrativo. O país se tornou referência internacional sobre a temática graças aos programas e serviços públicos de apoio aos dependentes que foram implementados junto com a mudança legislativa. Fillippe considera a perspectiva da legalização interessante porque ela possibilita práticas de redução de danos no campo legal. “Hoje nós já fazemos isso. Como redutor de danos, muitas vezes quando algum paciente traz a possibilidade do uso da maconha para reduzir o dano do uso do crack, eu entendo como uma estratégia interessante. Entretanto, o sujeito continua na ilegalidade ao ter que comprar essa droga no mercado ilícito”, conta.

A ilegalidade de algumas drogas é interessante do ponto de vista econômico, continua o psicólogo, porque a guerra às drogas é lucrativa. “Só que você não faz guerra contra um tablete de maconha, você faz guerra contra as pessoas”, contextualiza, “Daí necessariamente quando a gente fala da legalização a gente vai ter que falar, por exemplo, do combate ao racismo no nosso país”. Fillippe atribui a PNAD de Osmar Terra e a portaria nº 3.588 do coordenador Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas (CGMAD) do Ministério da Saúde Quirino Cordeiro, que alterou a Política Nacional de Saúde Mental (PNSM) – duramente criticada por diversos órgãos de saúde mental (https://bit.ly/2KI8nM1) –, ao avanço do conservadorismo no país.

Por fim, ele considera positiva a política estadual de saúde mental, uma das únicas do país. “Nós temos um cenário bastante desagradável no campo nacional, mas com a tranquilidade de que em Minas Gerais a gente tem conseguido sustentar práticas antimanicomiais, libertárias, de cuidado, que levam em consideração os desejos dos sujeitos”, declara.