Sérgio Moro: do céu ao inferno

"Este mesmo Moro que hoje se mostra silencioso (ou silenciado?), ainda tenta manter as vestes de herói da nação ao lançar seu pacote anti-crime, uma aberração jurídica que preocupa aqueles que prezam pelo futuro das instituições brasileiras"


Por Guto Alves

Brasília- DF 30-03-2017 Juiz Sergio Moro durante depoimento na comissão de reforma do Código de Processo Penal. Foto Lula Marques/Agência PT

Em 2014, começava no Brasil, sob muitos holofotes, a operação que mudaria os rumos da política nacional e do país em si, bem como selaria o destino de descrédito das instituições democráticas brasileiras, sobretudo do poder judiciário: a Operação Lava Jato. No epicentro desse circo midiático, um nome até então desconhecido despontava nacionalmente: Sérgio Moro.

Há menos de cinco anos, portanto, o juiz de primeira instância era alçado ao posto de herói nacional por meio da espetacularização guiada das investigações e dos julgamentos da Operação Lava Jato, que teve como auge a condenação do ex-presidente Lula.

A narrativa começava a ganhar forma na mesma medida em que Moro era acusado de politizar suas decisões jurídicas. De um lado, um país alimentado pelo ódio à política e a ascensão estimulada do antipetismo, de outro um juiz com um grande projeto de poder e imagem que, agora, se vê à beira do precipício.

Ao assumir o comando da Lava Jato e trazê-la a público como seu grande projeto persecutório, Moro travestiu-se de herói combatente contra a corrupção. Assume, então, funções ativas na investigação e no julgamento dos mesmos réus, ultrapassando claramente suas atribuições como juiz, e, mais do que isso, tornando-se uma figura pública ativa, dando entrevistas toda semana, palpitando sobre tudo.

Ao não poupar-se das associações de sua imagem ao antipetismo em formação e crescimento, o Juiz Moro viu seu destino traçado – e, por que não dizer? selado. Era a oportunidade perfeita para, alinhado aos conglomerados de comunicação, alçar voo sobre a instabilidade econômica, política e jurídica que o Brasil vivia.

É importante ressaltar que em comum nestas três esferas de instabilidade está o descrédito nas instituições e mandatários por uma população indignada, porém acuada. O desgaste da imagem dos três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário -, somado à crise econômica e alimentado por uma campanha inflamatória sistemática posta em marcha pela grande imprensa, despertou entre os brasileiros a sede por justiça a qualquer custo, pelo fim da impunidade e da corrupção.

A Lava Jato, quando assume o grande papel, porém indefinido e vago, de “combatente contra a corrupção”, ela caminha ao encontro do clamor nacional, mas não se preocupa em convencer de que agirá com correção, ética e legalidade. Quando se tem em mente, desde o início, o que deve ser julgado, como deve ser julgado, quais os fins a serem atingidos e as pessoas a serem derrubadas, não se persegue a verdade. Descarta-se esta verdade em favorecimento do que se quer atingir. Interessa a produção de um resultado programado anos atrás, não como chegar até ele. Se a verdade não interessa ao julgador, o resultado é desastroso ao julgado.

Para a Lava Jato, na figura do super juiz Moro, era chegado o momento de “dar uma resposta ao povo”. Era preciso prender figuras que já estavam enforcadas pela imprensa, eram necessárias conduções coercitivas, era preciso criar situações que levassem a um resultado espetaculoso nunca atingido.

A Lava Jato falhou na sua missão de acabar com a corrupção, pouco fez pelo fim dos ilícitos, mas deixou, o tempo todo, emergir a figura de um herói em um país desesperado por mudanças e espetacularizou cada passo processual a fim de montar o circo da guerra à corrupção.

O herói de toga tinha partido

De figura discreta a herói, Moro perseguiu um caminho curto para chegar onde chegou. Despindo-se das obrigações morais para com o processo legal, seguro de que seus objetivos seriam alcançados, ignorou apelos jurídicos, inclusive internacionais, para que se limitasse às suas atribuições legais e retirasse o invólucro político que envolvia suas ações: que se retirasse de cena, portanto.

Era fácil, para não dizer prazeroso, ser Sérgio Moro. Com a imprensa aos seus pés e a opinião pública inflamada pelos pergaminhos midiáticos, Moro tinha como dar ao povo o que ele clamava. O fim era claro: a prisão de Lula. Como? Não importa.

Lula precisava ser preso e urgentemente. Ignorando, então, os princípios da legalidade democrática, a Carta Magna e os códigos que regem a moralidade do Direito processual, Moro aproveitou-se do fato de o momento lhe permitir ser quem de fato era. Era fácil atropelar convenções, leis e a própria Constituição, era fácil dissimular sua clara ligação com nomes tucanos, era fácil ignorar processos que não lhe interessavam à sua ideia fixa: era fácil porque ele sabia se calar quando conveniente, e só falava para ser aplaudido.

De juiz de primeira instância, Sérgio Moro se transformou em figura pública. Tornou-se uma espécie de estandarte da luta travada nas ruas. Seu rosto estampou camisetas, faixas e bandeiras em protestos e homenagens em todo o país.

Nos movimentos de rua iniciados em 2013, e que culminaram no impeachment de Dilma Roussef em 2016, tudo era uma coisa só: o combate a corrupção, o “fora todo mundo” (mas nem todo mundo assim…), a extirpação do PT, a prisão de Lula e a derrubada de Dilma. À frente, como herói de todos estes movimentos, estava a figura de Moro – ainda que com a mítica isenção de, de fato, não estar politicamente à frente de nada -, a imagem do homem sério, elegante, imparcial e inteligente. O homem perfeito que conduziria na prática o que se exigia em nome do Brasil.

Neste cenário inflamado, aproximavam-se, não coincidentemente, as eleições de 2018. O nome de Moro circula fortemente entre os movimentos da direita radical, que pediam candidatura à Presidência, ao que Moro rejeita e desmente de maneira categórica.

Era claro o caminho de Moro. Não precisamos nem mesmo nos lembrar da foto em que aparece sorrindo com Temer e Aécio Neves. Moro estava solidificado como o grande nome da direita brasileira: o juiz que encarcerou Lula. Um futuro brilhante o aguardava após tanto trabalho.

Hoje, meia década depois do início desta escalada, e menos de três meses de governo Bolsonaro, Moro se transmuta rapidamente em uma figura medíocre. Com um braço da imprensa fraturado, tem assistido seu nome ser arranhado em fortes agressões desde que assumiu o cargo de Super Ministro da Justiça de Jair Bolsonaro. Com seu silêncio resignado em meio a um governo já mergulhado em escândalos, Moro parece ter perdido o foco e se vê sem saída após ter cumprido com brilhantismo sua missão de prender Lula.

No meio do caminho havia um Bolsonaro

Se até então o nome de Bolsonaro era considerado uma grande piada, inclusive para sociais-democratas e partidos tradicionais da direita, em 2018 tudo mudou. Nem Moro esperava por isso. Em algumas ocasiões, chegou até mesmo a ignorar os afagos e puxa-saquismos de Jair em encontros públicos. Sempre o evitou, mesmo quando o nome de Bolsonaro começou a crescer e a vincular-se a ele. Mas tampouco desvinculava-se, que fique claro.

Convenhamos que, até para Moro, com todo o conforto de ser quem era e fazer o que quisesse sem ser importunado pela imprensa ou quem quer que seja, era delicado associar-se ao homem que defendia abertamente a tortura, o assassinato de adversários, a pena de morte, a posse irrestrita de armas, a homofobia, dentre outras aberrações que nunca se espera de um presidenciável. Era razoável que Moro não se aproximasse de Bolsonaro, pois havia ali um “limite moral” que lhe impedia de ir tão longe.

No entanto, faz todo sentido que essa aproximação se desse de maneira bastante natural quando Bolsonaro se torna o principal nome da corrida eleitoral.

Se lembrarmos que há poucos anos as ruas se encheram de pessoas teleguiadas que pediam a derrubada ilegal de uma presidenta legitimamente eleita, e que Moro não se posicionou; se avaliarmos que Moro sempre teve o Partido dos Trabalhadores como alvo exclusivo das investigações que conduzia; que o juiz condenou Lula, impedindo-o de concorrer nas eleições em que aparecia líder em todas as pesquisas de intenção de voto; e que Moro foi o estandarte de todos os movimentos antipetistas que se espalharam pelo país, então era melhor já ir se acostumando com a ideia de que Jair era o nome. Assim, funciona a cabeça de Moro.

Um estranho no ninho?

Que o governo Bolsonaro seria recheado de escândalos, crises internas e cenas grotescas que beiram as comédias de situação, não havia dúvidas. O que não se esperava era que tudo isso acontecesse de forma tão infantil e leviana como tem acontecido e, também, de forma tão veloz.

Nem Moro esperava por tanto. Talvez não esperasse por nada. É possível que Moro, cego na sua prepotência e arrogância, tenha considerado o governo de Bolsonaro como mais um dos rincões para o exercício de suas inconsistências, e que estas seriam novamente ignoradas pelo sistema.

Mas não parece estar sendo assim. Moro não deveria ter ignorado os evidentes alertas da bomba relógio a qual ele se aliou, uma figura tão medíocre como Bolsonaro. Ao fazer isso, deixou revelar não somente seu projeto doentio de poder, onde vale o que vier, como também sua própria mediocridade.

É incompatível com a mítica figura que vinha construindo aliar-se a um projeto de poder belicoso como o de Bolsonaro. Ao aceitar o convite, Moro rompeu todos os parâmetros, mostrou que se considera acima de tudo e de todos, e que acredita ser inabalável a persona heróica que buscou construir, não importando o que fizesse ou a quem se aliasse.

Perdoou corruptos, furtou-se a comentar as absurdas declarações de Bolsonaro, as quebras de decoro de todo o clã enquanto congressistas e parlamentares, chutou para as cucuias suas tão valiosas intenções e mostrou ser um juiz ligado intimamente à política, que tem um lado e que este lado é a sua própria ascensão.

O fator Bolsonaro, que Moro encontrou no caminho, foi seu maior engano. Pelo que tem feito, dito e, principalmente, pelo que não tem dito, torna-se impossível defender a escandalosa nomeação do juiz que prendeu o principal adversário do candidato eleito. É escandoloso manter-se em um governo investigado por ligações com milícias, é escandaloso estar ao lado de figura tão perigosa em governo tão instável.

Vale citar a Revolução dos Bichos, de George Orwell: “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”.

Os silêncios de Moro

Dentre a avalanche de problemas que coloca o governo Bolsonaro em crise desde o início, alguns casos chamam mais atenção que os outros. As primeiras “surpresas” para quem esperava o “novo” foram as nomeações para o ministério de figuras como Ônyx Lorenzoni, candidato forte a cair devido ao seu envolvimento com casos de corrupção. Não caiu.

Agora colega de Moro no ministério, recebeu o perdão daquele que lutava arduamente, até então, para extirpar a corrupção política, incluindo aí o caixa dois. É preciso salientar a gravidade da leitura que se faz aqui. Enquanto estandarte da luta do povo contra a corrupção e juiz que levou à prisão o maior líder político do país, símbolo de uma força ideológica contrária à sua, Moro agora se desconstrói explicitando, com cinismo e sordidez, o que muitos já sabiam: o juiz nunca travou uma luta real contra a corrupção.

Até o momento, Moro havia criado ao seu redor uma espécie de “alto escalão” desta luta. Representava uma parte do judiciário que, por fim, funcionava, que, por fim, prendia os corruptos, que, por fim, levava Lula para a cadeia. Já no governo, as coisas mudam. Se Ônyx pediu desculpas, como assim justificou, então, está perdoado e nominado amigo e colega governista.

Quando se silencia diante do fato de sentar-se ao lado de um investigado por corrupção, Moro engata a marcha seguinte no caminho de sua derrocada moral. A primeira marcha, é claro, foi aceitar o convite para integrar o novo governo.

A partir de seu silêncio, a vida de Moro passa a ser um eterno retiro espiritual. Resignado, não tem mais opinião sobre tudo. Nem mesmo sobre a queda de outro colega, Bebianno, que sabia de mais e ameaçou expor o governo caso caísse, chegando a pedir desculpas por “ter ajudado a eleger Jair Bolsonaro”, referindo-se ao presidente como “maluco”.

Não tem opinião sobre os desvios investigados pelo COAF envolvendo assessores da família Bolsonaro e a própria primeira-dama. Não tem opinião sobre o escândalo das candidaturas laranja do PSL, partido do presidente para o qual trabalha. Não tem opinião sobre o possível envolvimento da família Bolsonaro com milicianos ligados ao brutal assassinato de Marielle Franco. Aliás, teria Moro opinião sobre Marielle?

Moro também se silenciou quando um parlamentar reeleito decidiu renunciar ao mandato devido a ameaças de morte, inclusive aos familiares. Quando Jean Wyllys decide deixar o país e renunciar ao mandato, o mínimo que se espera de um representante da justiça nacional é uma nota de lamento. Nada, senão o escárnio por parte do presidente, que tuitou, como é de seu costume: “Grande dia!”. Moro assina embaixo com seu silêncio.

O ministro, ainda no caso de Jean Wyllys, também não teve nada a dizer diante do fato de uma desembargadora ter sido flagrantemente homofóbica e ter incitado o assassinato de Jean com insinuações cruéis, fazendo alusão a tortura do mesmo. Aliás, até o momento nenhuma sanção esta senhora sofreu.

Um Moro hoje desmoralizado segue em meio a um governo atrapalhado. Se vê obrigado a enfrentar situações como a que se deu no Forum Econômico Mundial em Davos, onde Bolsonaro, que tinha quarenta e cinco minutos para discursar, usou destes apenas seis para fazer uma fala ridicularizada pela imprensa internacional. “Decepcionante” e “engessado”, foram algumas das repercussões lá fora.

Mediocridade em um país à espera de heróis

Este Moro, que permanece em silêncio, parece perdido, senão desesperado, diante do cenário que enfrentará. Mas, impávido, segue adiante, ignora os próprios silêncios, e tenta manter a pose de grande homem que o sustentou e o trouxe até aqui. Não importa mais se a imprensa não lhe rende capas gloriosas. O ego do poder que emana de Moro é tão grande que sua figura se traveste de indestrutível. Mas não o é.

Este mesmo Moro que hoje se mostra silencioso (ou silenciado?), ainda tenta manter as vestes de herói da nação ao lançar seu pacote anti-crime, uma aberração jurídica que preocupa aqueles que prezam pelo futuro das instituições brasileiras. Um juiz que condenava amplamente a prática de Caixa 2 como “pior do que corrupção” e hoje alivia para aliados políticos voltando atrás em seus valores.

Já não tem mais como ser ocultada na sua evidente perseguição política contra todo um Projeto de Estado que vinha sendo estruturado até 2016. Quando se joga arriscando tanto, apostando tão alto, é preciso estar preparado para a queda que se segue. Moro parece não estar. Quando deixou a toga e aceitou fazer parte de tudo da mediocridade que se coloca para o país, Moro perdeu seus super poderes.

Em menos dois meses, o super juiz que estampou capas de jornais e revistas nacionais e internacionais, que tanto almejou, que tanto o ascendeu, se vê encurralado em ambiente que, teoricamente, deveria ser inimigo. Mas Moro não é um estranho no ninho e seria um engano pensar assim.

Neste país que segue em busca de heróis que não existem e que hoje enfrenta a ameaça de um governo fascista e possivelmente ligado a grupos milicianos, Moro é o exemplo vivo de que não se constrói heróis baseado em jogadas e esquemas jurídicos. O Brasil, então, assiste, também resignado, à derrocada de mais uma peça deste golpe lento que o país sofre.