Todo sangue é válido
Projeto de lei prevê fim da restrição para homens gays e bissexuais doarem sangue
Por Petra Fantini
Publicado em 14/06/2018
Um critério que institucionaliza a discriminação por orientação sexual pode ser derrubado em Minas Gerais. O projeto de lei 5207/2018, de autoria do deputado estadual Cristiano Silveira (PT), prevê a permissão para que homens que fazem sexo com outros homens possam doar sangue e extingue qualquer normativa para a doação que exclua minorias sociais e sexuais.
O documento (https://goo.gl/gEYiTq), que atualmente aguarda designação de relator em comissão, propõe a igualdade de condições para doadores de sangue, “independente da natureza de suas práticas sexuais (homoafetivas ou heteroafetivas)”, mas salvaguarda casos “devidamente justificados de proteção à saúde pública”. Essa nova perspectiva rejeita o uso do antigo conceito de ‘grupos de risco’ para classificação dos doadores e propõe a triagem passe a ser feita com base no critério de ‘comportamento de risco’. (leia abaixo texto do infectologista Unaí Tupinambás sobre o assunto)
O estudante de direito Athos Matheus Ribeiro foi confrontado por essa proibição recentemente. Seu pai fez um autotransplante de medula e precisava de doações de sangue de 40 pessoas para reabastecer o estoque do Hemominas. Athos pediu doações a todos que ele conhecia, porém muitos de seus amigos são gays e foram impedidos de contribuir.
No momento da triagem, os profissionais de saúde barravam todos que haviam se relacionado com outros homens nos últimos seis meses. Gays mais afeminados, denuncia Athos, sequer foram questionados, sendo cortados imediatamente. “Foi um custo conseguir todas as doações. Quem conseguiu doar foram as pessoas casadas, amigas dos meus pais”, diz o estudante.
Athos considera a definição de grupos de risco anacrônica. Segundo ele, a vida sexual de alguns de seus amigos heterossexuais oferece mais risco do que a dos gays.
Samuel Araújo, militante do movimento social Frente Autônoma LGBT e doutorando em saúde LGBT na área da Demografia, lembra que, quando a Aids surgiu, nos anos 80, a prevalência da identificação o HIV entre homens que fazem sexo com homens e em mulheres travestis foi usada como justificativa para a exclusão destes grupos do processo de doação, mas que hoje o critério já não faz mais sentido.
“No início, apesar de já preconceituosa, essa demanda fazia um pouco de sentido do ponto de vista econômico-financeiro, porque na época era difícil e caro detectar a doença por testes”, explica. Hoje, não apenas o teste é mais barato e seguro, como também a incidência de HIV/Aids não se limitada mais a grupos.
Entre 2007 e 2016, os casos de infecção registrados pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) (https://goo.gl/pEU8Nh) em homens maiores de 13 anos de idade foram 50,4% por exposição homossexual, 36,8% heterossexual e 9,0% bissexual. Entre as mulheres, nessa mesma faixa etária, 96,4% dos casos são frutos de exposição heterossexual.
Para Samuel, a restrição ainda praticada é resquício de uma política estigmatizante de identidade sexual que não considera práticas que exponham a riscos maiores. “Por exemplo, mesmo se você estiver falando de um homem gay que está em um relacionamento monogâmico há anos, ele ainda assim não conseguirá doar sangue”, diz.
“Em uma sociedade violenta contra pessoas LGBT, o Estado promover mais um fator estigmatizante é absurdo”, diz o pesquisador, e contribuiria para o chamado “estresse das minorias”.
Em nota, a Fundação Hemominas esclareceu que “a instituição, assim como todos os hemocentros públicos brasileiros, segue as normas exigidas pela legislação brasileira, definidas pelo Ministério da Saúde, que têm o objetivo de garantir a qualidade do sangue doado e a segurança transfusional para os receptores de sangue e hemocomponentes”.
Não existem grupos imunes
Unaí Tupinambás
Clínico infectologista, professor da UFMG chefe do serviço de infectologia do Hospital das Clínicas
Este assunto é de extrema importância e tem que ser discutido por toda a sociedade de forma bem transparente. Os Hemocentros de modo geral aplicam vários critérios de seleção para os doadores de sangue. Existem condições de saúde, de estilo de vida (viagem para área endêmica para doenças que podem ser veiculadas pelo sangue: por exemplo malária entre outras) ou mesmo características antropométricas (baixo peso por exemplo) que impedem a doação por tempo determinado e outras de forma definitiva. Estes critérios vem resguardando a qualidade do sangue que utilizado (a transmissão do HIV por transfusão no Brasil é extremamente baixa, tendendo a zerar esta transmissão nos últimos anos). Desde o início da epidemia da infecção pelo HIV é sabido que determinado comportamento sexual apresentava maior vulnerabilidade para contrair HIV. O comportamento sexual homoafetivo (homens que fazem sexo com homens -HSH) estaria entre aquelas condições que contra indicariam a doação de sangue.
Não há grupos IMUNES à infecção pelo HIV, e sim comportamento ou situações de maior vulnerabilidade. A maior vulnerabilidade a infecção se deve a práticas com risco aumentado: sexo anal desprotegido (sem uso de preservativo), usuários de drogas ilícitas e profissionais do sexo. A prevalência da infecção pelo HIV na população HSH é da ordem de 10 a 15% no Brasil. (Boletim epidemiológico Brasil 2017).
Toda generalização em políticas públicas tem o mérito de tornar estas ações mais ágeis e seguras e com maiores chances de acerto. Pagamos um preço por esta generalização pois pode aumentar o preconceito e discriminação contra a população HSH. Vamos lembrar que o Brasil é campeão de crimes contra população LGBTi (de acordo com o Grupo Gay Bahia desde o Golpe de 2016 houve aumento de 30% de assassinados contra gay e transgenero).
A ciência evoluiu muito desde eclosão da epidemia. Exames de triagem sorológicos são mais sensíveis e específicos com o período de janela (tempo necessário para o resultado ficar positivo após a infecção) cada vez mais curto. Vários países da Europa, Estados Unidos, Canadá estão revendo as contra indicações de doação entre a população HSH. Nestes países até pouco tempo esta proibição era definitiva mas após longa discussão entre as partes interessadas, a doação é permitida após período de 12 meses da última relação homoafetiva. No Japão este prazo é ainda mais curto, 6 meses.
Interessante notar que a incidência de doadores HIV+ vem reduzindo ao longo dos anos desde 1990. E isto não se deve a novos critérios para doação e sim pela maior divulgação sobre os cuidados dos doadores e acesso aos exames de HIV em outros locais que não os bancos de sangue (M. Goldman et al. Vox Sanguinis (2018).
Estudos na Itália não notaram diferença entre a prevalência da infecção pelo HIV entre os doadores antes e após a mudança dos critérios de doação. Esta taxa se manteve 12,3% em 100 mil entre os doadores pela 1ª vez e 3,8% em 100 mil entre os doadores regulares e 90% destes casos de HIV era entre homens. (Suligoi et al, Blood Trans. 2013).
Outros estudos teóricos de modelos matemáticos, indicam que a alteração dos critérios de doação (permitindo doação após 12 meses da última relação homoafetiva) mostram um risco negligenciável menor que 1 em 1 milhão (Pillonel J, Vox Sang 2012, Anderson AS et al. Transfusion, 2009).
Outro dado que temos que considerar é que esta população HSH têm comportamentos diverso. Alguns têm baixa vulnerabilidade para HIV devido a práticas sexuais seguras (uso de preservativos) e isto deve ser considerado.
Diante dos novos estudos e dos avanços da ciência faz-se necessário rediscutir de forma clara, transparente e democrática a questão de doação de sangue entre população HSH. Este reposicionamento, seja retificando ou não os critérios atuais contribuirá para reduzir o estigma, preconceito e a discriminação desta população que vem sofrendo há décadas (séculos?) podendo inclusive melhorar o estoques de hemoderivados no pais.