Um negro preso, arte e raiva religiosa

Jovem de 23 anos é preso acusado por evangélicos de racismo em protesto contra exposição de Pedro Moraleida


Por Lucas Simões (texto e fotos)

 

Arlee Douglas (de boné) discute com manifestantes religiosos na presença de policiais militares

 5 de outubro de 2017. O pedreiro Arlee Douglas Lima Rosa, de 23 anos, negro, morador da Zona Norte, só queria chegar em casa depois do trabalho. Mas decidiu parar para ver o que acontecia na porta do Palácio das Artes, no Centro de Belo Horizonte, onde dezenas de evangélicos enfurecidos vociferavam, acusando a exposição do artista Pedro Moraleida, “Faça Você Mesmo Sua Capela Sistina”, de fazer apologia à pedofilia. 

Trânsito parado às 18h50 e Arlee reclamou do protesto. “Todo dia é isso, agora, de (protesto contra) pedofilia. Esse povo não entende nada de arte”. Gritou alto, bateu boca. Até alguém se dirigir a ele, subitamente, acusando-o de racismo. “Você me chamou de preto fodido? Eu ouvi direito? Repete, racista”, disse o evangélico, também negro, Ronan Ferreira, de 25 anos. “Tá gravado, eu gravei aqui no celular”, disse Ronan. “Eu disse que você não representa a minha raça, foi o que eu disse, só isso”, contrapôs Arlee, apontando a pele negra do seu próprio braço. Foi o suficiente para a guerra.

No meio de uma fervorosa discussão, o pastor Leonardo Alvim de Melo, de 38 anos, da Comunidade Evangélica Projeto Viver (Ceprovi), responsável pela organização do protesto, deu voz de prisão a Arlee Douglas, com o dedo em riste. “Eu, como cidadão brasileiro, estou dizendo que você está preso”, disse Leonardo. E assim foi. Sem mais delongas.  

A Polícia Militar acompanhou o protesto, mas não conseguiu evitar o embate entre apoiadores da exposição e evangélicos contrários à arte

Em meio ao tumulto generalizado, a Polícia Militar conduziu Arlee à força até uma viatura, estacionada a 20 metros do protesto, na avenida Afonso Pena. “Por que eu tô sendo preso?”, questionava o jovem. “E o outro cara?” Quase dez minutos depois, Ronan apareceu na viatura, dizendo que prestaria queixa na delegacia. Mas não mostrou o vídeo que disse ter gravado com a prova do racismo. “O vídeo certo está com o Gênesi”, se corrigiu depois, checando as gravações do seu celular. 

Arlee Douglas é revistado, após ser acusado de racismo, enquanto Ronan Ferreira (ao fundo, de calça jeans e camisa preta) presta queixa contra o jovem

Gênesi Araújo, de 21 anos, também evangélico da Ceprovi, e um dos mais agitados entre os manifestantes, disse que mostraria a prova na delegacia. “A gente vai esclarecer tudo é com a polícia”, falou, aos berros. “O importante é falar que essa exposição é um atentado contra a família. Eu entrei lá, tem um pênis ejaculando nos pés de Cristo. Isso é certo? Se eles são tão a favor da diversidade assim, deveriam parar de fazer cristofobia”, gritou mais uma vez.

Com uma prisão duvidosa, palavras raivosas e uma associação, no mínimo, desonesta entre arte, pedofilia e religião, o protesto dos evangélicos contra a exposição de Pedro Moraleida, consagrado artista mineiro falecido em 1999, fez o barulho que pretendia e muito mais. Mas não sem a resistência de muita gente que fez frente aos gritos de “pedofilia não é arte” e “salvem nossas crianças”, vociferados pelos religiosos. Alunos do Centro de Formação Artística (Cefart), do Palácio das Artes, que tinham aula no momento do protesto, ocuparam a avenida Afonso Pena com batuques, canções de amor, gritos de “arte é liberdade” e vários beijaços gays. 

Jovens se beijam na frente dos evangélicos, em um contra-protesto pela manutenção da exposição de Pedro Moraleida

  O estudante Alexsander Ferreira, aluno do Cefart, era um deles. “É muito preconceito e oportunismo. A exposição está aqui há um mês. Aí, depois que um vereador resolve reclamar, eles vem fazer isso na porta de uma instituição de arte. Eles não sabem nem o que estão falando”, disse. O pastor evangélico José Barbosa, contrário ao protesto, tentou argumentar com os evangélicos, em vão. “É muito difícil chegar ali e dialogar. Eu fui falar com eles como pastor, mas não dão ouvidos a ninguém. Não há nada de pedofilia nessa exposição. É triste, porque é apenas uma ala de evangélicos que toma essa atitude”, disse Barbosa. 

Depois da prisão de Arlee Douglas, a Tropa de Choque da Polícia Militar fez a mediação entre manifestantes pró e contra a exposição. Mas àquela altura, o estrago estava feito. Em vários momentos, os religiosos pediram a presença do Secretário de Estado de Cultura, Ângelo Oswaldo, exigindo o fim imediato da exposição. “Só vamos sair da Afonso Pena quando o secretário chegar e der um fim nisso”, disse o evangélico Leonardo Alvim. Mas, o secretário não apareceu. E, por enquanto, mantém o silêncio diante aos ataques iniciados pelo vereador Jair di Gregório (PP), na quarta-feira, quando o parlamentar ameaçou acionar o Ministério Público contra as 130 obras de Pedro Moraleida expostas na Galeria Alberto da Veiga Guignard, que abordam o consumismo, o papel político do artista e a dualidade entre religião e cultura pop. 

Pouco depois que que os evangélicos iniciaram o protesto no Palácio das Artes, um pequeno grupo de 20 pessoas esteve na porta da Funarte, às 20h, para fazer coro contra a peça “Jesus, rainha do céu”, monólogo em que a atriz Renata Caravalho, uma mulher trans, interpreta Jesus. A peça foi alvo de ameaça de processo judicial por parte do deputado João Leite (PSDB) na quarta-feira (04/10), após discurso do tucano na Assembleia Legislativa se referindo ao espetáculo como “aberração”. Mesmo assim, dezenas de pessoas ainda ficaram do lado de fora da Funarte, frustrados, sem conseguir ingresso para a assistir a peça. E Arlee Douglas, para constar, continuava detido, até então, na Delegacia Central de Flagrantes II, para onde foi levado. Nesta sexta-feira (06/10), os manifestantes evangélicos prometem novo protesto contra a exposição de Pedro Moraleida, às 9h, mais uma vez na porta do Palácio das Artes.