Após Queermuseu, quadro sobre pedofilia é censurado

Obra da artista mineira Alessandra Cunha Ropre, que compunha uma exposição sobre violência de gênero e machismo, em Campo Grande, foi apreendida pela Polícia Civil


por Lucas Simões

 

O conservadorismo escancarou de vez a porta da censura contra a arte questionadora de opressões e padrões de gênero. Apenas cinco dias após a exposição “Queermuseu” ser interrompida em Porto Alegre pelo Santander Cultural, sob acusações de apologia à pedofilia e zoofilia, a pintora mineira Alessandra Cunha Ropre teve um quadro confiscado pela Polícia Civil, nesta quinta-feira (14/09), também acusada de estimular a pedofilia.

Intitulada justamente “Pedofilia”, a obra de Alessandra Ropre estava em exposição desde julho, no MARCO (Museu de Arte Contemporânea) de Campo Grande, localizado no Parque das Nações Indígenas. Antes, a exposição esteve em Uberlândia, cidade natal da artista, com temporada entre 2 de março e 12 de abril, na Galeria de Artes Lourdes Saraiva Queiroz. E sem qualquer problema até então.

Há apenas três dias do encerramento da exposição em Campo Grande, os deputados estaduais do Mato Grosso do Sul Herculano Borges (SD), Paulo Siufi (PMDB) e Coronel David (PSC) registraram um boletim de ocorrência denunciando o quadro específico.

Paulo Siufi, que também é médico pediatra há 20 anos, disse ter se apoiado no artigo 118 A, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que afirma ser crime “praticar, na presença de alguém menor de 14 anos, ou induzi-lo a presenciar, conjunção carnal ou ato libidinoso, afim de satisfazer lascívia própria ou de outrem”.

“De maneira nenhuma eu quero passar a impressão de ser contra a arte, porque não sou. O caso é que o MARCO é um museu público, com dinheiro público, e não é lugar desse tipo de exposição que alude ao erotismo explicitamente. Não importa se a sala tinha ou não aviso para maiores de 18 anos. Agora vamos restringir crianças em um museu? Impedi-las de entrar? Por que uma placa e um aviso não impedem, convenhamos”, argumentou Siuf.

O delegado Fábio Sampaio, da Delegacia Especializada de Pronto Atendimento à Criança e Adolescente (DEPCA) de Campo Grande, esteve no museu nesta quinta-feira à tarde e acatou a denúncia dos parlamentares. Ele precisou de cerca de meia hora para determinar a apreensão do quadro, segundo a diretora do MARCO, Lucia MontSerrat.

“Houve um equívoco gigantesco. Nunca vi nada parecido na minha vida. A polícia levando um quadro de arte coberto com um pano, como se aquilo precisasse ser escondido por ser um crime e, na verdade, é uma denúncia contra a pedofilia e o machismo. Isso foi confiscar uma obra que denuncia a violência”, disse a diretora do museu. Ela ainda ressaltou que a exposição tinha placa indicativa para maiores de 18 anos, além de estar disposta em uma sala com vidros escuros.

 

A pintora Alessandra Ropre falou ao O Beltrano sobre o quadro “Pedofilia”, que integra a exposição “Cadafalso”, composta por outros 32 quadros da artista, todos debruçados sobre reflexões de gênero e, principalmente, machismo. No quadro denunciado, pintado em acrílica sobre algodão cru costurado a uma chapa de MDF, uma criança de olhos arregalados está entre dois homens adultos e diante aos órgãos sexuais masculinos deles expostos. Bem ao centro e na borda da pintura, vem escrita duas vezes a frase-denúncia: “o machismo mata, violenta e humilha”.

“Cada uma (das obras) chama atenção para um tipo de comportamento dentro do “sistema machista”. Sendo assim, temos vários títulos questionadores e que denunciam alguma situação de violência, opressão e submissão social. E, na imagem que ofendeu aos homens políticos, não há nada obsceno. Trata-se de uma criança estilizada, de olhos arregalados, no meio de dois homens com seus órgãos sexuais eretos. Não é apologia, é denuncia. É um grito silencioso, porém colorido, de que isso acontece na nossa sociedade”, disse Alessandra.

O delegado Paulo Sérgio Lauretto, titular da DEPCA de Campo Grande, informou que fará ainda nesta semana uma visita à exposição para “confirmar ou refutar os relatos do boletim de ocorrência” e, só depois, chamará a artista mineira para depor.

A pintora Alessandra Ropre, entretanto, disse que vai acionar a justiça contra a ação dos deputados. Para ela, os parlamentares aproveitaram a polêmica sobre o encerramento precoce da “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, após protestos do MBL, de setores cristãos e do recuo imediato do Santander Cultural, “para se promover”.

“Os políticos aproveitaram o momento para se promover usando a arte. Faltando três dias para o encerramento da exposição, vemos que não são culturalmente informados, e se aproveitam para ‘mostrar serviço’, questionando um comportamento denunciado nas artes. Pretendo tomar as atitudes cabíveis, consultar advogados e me defender. Continuar lutando pela liberdade de expressão sempre e contra o machismo, a intolerância e todas as outras injustiças sociais”, disse Ropre.

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