As lições que não aprendemos

Enquanto outros países da América Latina passaram a limpo suas ditaduras, o Brasil optou por uma transição de conciliação que impediu o país de conhecer sua própria história


por Leticia Villas

“Eu percebi como as pessoas daqui não falam na ditadura, na tortura, em tudo de ruim que houve nesta época. Na Argentina nós aprendemos tudo na escola e em casa, sabemos exatamente o que aconteceu no nosso país”. A fala é do argentino Nicolas Barrera, 26 anos, que mora no Rio de Janeiro desde dezembro de 2016. “A cada dia 24 de março, que é data em que se iniciou o golpe), a gente via isso nas aulas de história, havia um ato na escola relembrando o que aconteceu. Eu me lembro, quando tinha 12 anos. O presidente da república foi na escola de militares e os fez tirar da parede os quadros com os ditadores que governaram país”, lembra Barrera.

“O que senti aqui foi que, embora a ditadura tenha acabado – felizmente -, a relação com o militar é muito forte no Brasil. Eles não perderam o símbolo de poder. Aqui é tudo baseado nisso. Por exemplo, no Brasil há políticos que são tenentes, coronéis, generais. Isso na Argentina é impossível. Não sei se isso tem a ver com o fato de não ter havido um julgamento aos militares aqui, então os brasileiros não sabem o que aconteceu ou esqueceram ou viraram a página, e os que vieram não foram corretamente ensinados respeito do que o foi a ditadura”, comenta.

Uma mostra de como o direito à memória e à verdade está em outro patamar no país vizinho é um comercial de TV relembrado por Nicolas Barrera. “Eles diziam: se você nasceu entre os anos de 1976 e 1982 e duvida da sua identidade, venha à Fundação Abuelas de Plaza de Mayo” e elas farão um estudo de DNA para saber se você é um dos filhos de pessoas desaparecidas que foram entregues a outras pessoas”.

Transição viciada

O sociólogo e professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC Minas, Onofre dos Santos Filho, explica que a redemocratização no Brasil se deu de forma diferente do que nos nossos vizinhos Argentina – que aconteceu pela Guerra das Malvinas – e Chile, onde sempre houve uma polarização contra e a favor do ditador Augusto Pinochet. “Aqui existia um pedido social pelo fim da ditadura, mas quem ditou o tom foram os militares, a transição foi pautada pelo regime”.

O professor explica que com a vitória e morte de Tancredo Neves e a posse de um notório apoiador da ditadura, José Sarney, a transição também ganhou uma aparência de tranquilidade. “No Brasil há uma ideia de que somos pacíficos e mudamos suavemente. Ao mesmo tempo, houve apoio total da mídia ao golpe militar e se as pessoas se informam por ela – e agora pelas redes sociais -, acabam achando que não houve realmente uma ditadura, mas acreditam na ‘ameaça comunista’, que apareceu em função da guerra fria”, diz Santos Filho. Por outro lado, as escolas ficaram com uma versão frágil deste período porque falar deste período de forma crítica ás Forças Armadas seria um ato “antibrasileiro”. O professor completa: “Na Alemanha, todos aprendem que o nazismo é uma vergonha para o país, todos conhecem a história. Aqui não nos é ensinado que devemos nos envergonhar da ditadura”.

Segundo ele, outro aspecto que dificultou o entendimento do que de fato foi o regime militar é a ligação que o brasileiro faz de democracia com eleições. Como o golpe de 1964 não acabou as eleições imediatamente, não ficou tão clara a intervenção, pois os presidentes militares eram escolhidos e o legislativo continuou funcionando por um tempo.

Redes Sociais“As mídias sociais deram o direito à fala a legiões de imbecis que, anteriormente, falavam só no bar, depois de uma taça de vinho, sem causar dano à coletividade. Diziam imediatamente a eles para calar a boca, enquanto agora eles têm o mesmo direito à fala que um ganhador do Prêmio Nobel. O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”.

Umberto Eco

“Quando se pensa na era das redes sociais, parece que estamos vivendo uma era da informação. Quando se junta isso ao renascimento da direita, que nunca teve uma leitura muito clara da ditadura, o cidadão acredita realmente que as prisões, as torturas, os assassinatos, os sequestros de crianças, a suspensão dos direitos constitucionais, tudo o que é contado por quem viveu aquela época não foi tão terrível assim”, diz o professor da PUC, Onofre dos Santos Filho.

Para ele, as manifestações de 2013 – pensadas e financiadas pela direita e pedia o impeachment de Dilma Rousseff e a intervenção militar – somado ao discurso falso de que o Partido dos Trabalhadores (PT) tentou implantar o comunismo no Brasil, gerou na população uma insegurança e urgência de melhora. Aliado a esse cenário, uma profunda crise financeira, que fez com que os brasileiros colocassem emprego, crescimento da economia, ordem social, segurança à frente dos direitos democráticos.

A polarização do país hoje, para o professor, tem efeitos positivos e negativos. Ao mesmo que mostra quem é o inimigo, o que é bom, sepultou a ideia de que a democracia tem que ser preservada acima de tudo.

“As discussões virtuais estão acabando com a ideia de que o brasileiro é um povo pacífico. Quem está ali não quer debater, quer apenas reafirmar os seus valores. Quando a pessoa ouve uma crítica, diz que o seu direito de expressão não está sendo respeitado. A democracia exige que tenhamos educação para sermos democráticos. Se na sua casa você não respeita sua empregada, na política você vai repetir este comportamento”, compara o professor Onofre.

Jovens alheios ao passado

Na sala de aula há muitos anos, Onofre percebe uma mudança clara no perfil dos alunos e conta que muitos não sabem fatos que aconteceram antes do próprio nascimento. Com isso, parece que tudo sempre foi igual ao que é hoje e o passado é relativizado. “O que acontece no Brasil não é diferente do que ocorre em outras partes do mundo: excesso de ‘presentismo’”, conta. A ideia de que temos problemas graves e complexos para resolver e isto tem que ser feito de forma rápida leva à ideia de que só será possível com o uso da força, de excluir o diferente e impor o seu modelo. Isto também foi feito em 1964, com a ideia de que o Brasil era ‘ingovernável’ e que a democracia só piorava.

Para o professor, quem está à frente das mudanças no Brasil hoje são as mulheres. “São elas que estão levantando questões que vão melhorar nossa democracia. A política como é feita no Brasil nos levou à ditadura com o apoio civil e são as mulheres que estão propondo algo diferente. Por isso são hostilizadas, discriminadas, mortas. A política tradicional resulta em Bolsonaro, a esperança vem deste movimento”, afirma Onofre dos Santos.